sábado, 31 de outubro de 2009

A Ordem do Discurso (Michel Foucault) FRASES!





O desejo nao gostaria de entrar na ordem incerta do discurso, naquilo que ele tem de peremptório e decisivo;

a instituição vigia o aparecimento do discurso, concede-lhe um lugar e um poder, honrando-o e desarmando-o;

desejo e instituição inquietam-se face àquilo que o discurso é na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita;

em toda sociedade, a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada e redistribuída, através de certos procedimentos;

em nossa sociedade, o procedimento de exclusão mais evidente e familiar é o interdito;

tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala;

o discurso não como elemento neutro ou transparente no qual a sexualidade se desarma e a política de pacifica, mas o contrário;

os interditos que atingem o discurso revelam o seu vínculo ao desejo e ao poder;

o discurso não como o que manifesta (ou esconde) o desejo, mas como objeto de desejo;

o discurso não como o que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual e com o qual se luta;

o discurso como poder;

em nossa sociedade, outro princípio de exclusão, além do interdito: partilha e rejeição; ex.: o louco, reconhecido através de suas palavras;

a partilha, longe de ter se apagado, exerce-se através de novas instituições (médicos, psicanalistas);

partilhas arbitrárias ou organizadas em torno de contigências histórias;

partilhas não se exercem sem constrangimento ou, pelo menos, sem um pouco de violência;

qual o tipo de partilha que rege a nossa vontade de saber?;

com os gregos, no séc. VI, o discurso verdadeiro, pelo qual se tinha respeito e terror, era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido;

com os gregos, no séc. V, chegou o dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado de enunciação, eficaz e justo, para o próprio enunciado;

o sofista, grécia antiga, foi encurralado, quando o discurso verdadeiro deixou de ser o valioso e desejável;

a partilha histórica deu à nossa vontade de saber a sua forma geral, mas esta não deixou, porém, de deslocar-se;

as grandes mutações científicas podem ler-se como aparecimentos de novas formas de vontade de verdade;

na viragem do séc. XVI para XVII, sobretudo na Inglaterra, apareceu uma vontade de saber que concebia planos de objetos possíveis;

a vontade de verdade apóia-se numa base institucional, sendo reforçada e reconduzida por práticas como a pedagogia, por exemplo;

a vontade de saber é reconduzida pela maneira como o saber é disposto numa sociedade;

"a aritmética é tratada nas sociedades democráticas, porque ensina as relações de igualdade, mas a geometria apenas deve ser ensinada nas oligarquias, dado que demonstra as proporções na desigualdade."

a vontade de verdade apóia-se numa base e numa distribuição institucionais;

a vontade de saber, em nossa sociedade, exerce sobre os outros discursos uma espécie de pressão e certo poder de constrangimento;

o que está em jogo na vontade de verdade, na vontade de o dizer, de dizer o discurso verdadeiro são o desejo e o poder;

não vemos a vontade de verdade enquanto prodigiosa maquinaria destinada a excluir;

interdito, partilha, rejeição exercem-se, de algum modo, a partir do exterior e dizem respeito à parte do discurso em que estão implicados o poder e o desejo;

nos procedimentos internos, são os próprios discursos a exercerem o seu controle;

os procedimentos internos de exclusão tratam de dominar a dimensão acontecimental do discurso;

em nossa sociedade há um desnível entre os discursos;

existem discursos que são ditos, ficam ditos, e estão ainda por dizer: são os textos religiosos ou jurídicos, aqueles que possuem o estatuto "literário" e, em alguma medida, os científicos;

não há a categoria dos discursos fundamentais ou criadores, dada de uma vez para sempre;

há muitos textos maiores que se dispersam ou desaparecem, e há comentários que por vezes vêm ocupar o lugar primordial;

o comentário tem o papel de dizer, finalmente, aquilo que estava, silenciosamente, articulado no texto primeiro.

o comentário exorciza o acaso do discurso;

entende-se autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem das suas significações, como lastro da sua coerência;

a função necessidade do autor variou ao longo do tempo;

as disciplinas são um outro princípio de limitação;

uma proposição tem de passar por exigências - estar no "verdadeiro" - para pertencer ao conjunto de uma disciplina;

as regiões do discurso não estão todas igualmente abertas e penetráveis;

o ritual define as circunstâncias e todo o conjunto de sinais que devem acompanhar o discurso;

as "sociedade de discurso" têm por função conservar ou produzir discursos;

já não existem "sociedades de discurso" com este jogo ambíguo do segredo e da divulgação;

mesmo na ordem do discurso verdadeiro, publicado e liberto de todo o ritual, exercem-se ainda formas de apropriação do segredo e de não-intermutabilidade;

a pertença doutrinal põe em causa ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito falante, e um por intermédio do outro;

a doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e interdita-lhes, por conseguinte, todos os outros;

todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos;

um sistema de ensino não passa de uma ritualização da fala, uma qualificação e uma fixação dos papéis dos sujeitos falantes;

os temas da filosofia vieram responder a jogos de limitação e exclusão ao proporem uma verdade ideal, enquanto lei do discurso, e uma racionalidade imanente, enquanto princípio de seu encadeamento;

o sujeito fundador está encarregue de animar diretamente, com as suas pretensões, as formas vazias da língua;

as coisas murmuram já um sentido que a nossa linguagem apenas tem de erguer;

o discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade que está sempre a nascer diante dos seus olhos;

ao ser colocado na ordem do significante, o discurso anula-se;

interrogar a nossa vontade de verdade, restituir ao discurso o seu caráter acontecimental e abandonar a soberania do significante;

os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que se cruzam, que às vezes se justapõem, mas que também se eignoram ou se excluem;

não devemos imaginar que o mundo nos mostra uma face legível e que temos apenas de decifrá-la;

o discurso é uma violência que fazemos às coisas;

a partir do discurso em si, do seu aparecimento e da sua regularidade, ir até às suas condições externas de possibilidade;

os discursos devem ser tratados como conjuntos de acontecimentos discursivos;

o acontecimento não é da ordem dos corpos, mas não é, de modo algum, imaterial;

a descontinuidade atinge e invalida as mais pequenas unidades tradicionalmente reconhecidas: o instante e o sujeito;

é preciso elaborar - fora das filosofias do sujeito e do tempo - uma teoria das sistematizações descontínuas;

introduzir o acaso como categoria na produção do acontecimento;

introduzir na raiz do pensamento, o acaso, o descontínuo e a materialidade;

a perspectiva crítica, para análise, põe em ação o princípio de inversão;

a perspectiva "genealógica", para análise, põe em ação os outros três princípios [citados anteriormente];

a filosofia de Hyppolite nunca estava à beira de se concluir;

o que é o começo da filosofia?

"[...] se a filosofia deve começar como discurso absoluto, o que é que se passará com a história, e que começo é esse que começa com um indivíduo singular, numa sociedade, numa classe social, no meio das lutas?"

Bye Bye...


terça-feira, 27 de outubro de 2009

"O comentário deve,

num paradoxo que ele desloca sempre,

mas de que nunca se livra,

dizer, pela primeira vez,

aquilo que já tinha sido dito entretanto

e repetir incansavelmente

aquilo que, porém, nunca tinha sido dito."

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Meus cabelos mudaram, mas eu continuo a mesma "Bárbara Bárbara"


Bárbara Bárbara

s em teus dias tu mesma,

no teu olhar para dentro.

Uma porção de infinito

em ti se descobre enigma.

Semelhas uma flor de aço,

que se dissolve em cristais,

redesenhando o jardim,

que te rodeia em convívio.

Um malmequer em pessoa,

num semblante que ressoa

olho e boca, sempre mudos:

estrela esbelta em tez bárbara,

o silêncio é que te faz,

Bárbara, essência de mundos."

Florisvaldo Mattos em "Galope Amarelo e Outros Poemas"

domingo, 25 de outubro de 2009

A Ordem do discurso - Michel Foucault



(trechos)

Download do texto completo: http://www.4shared.com/file/143624727/fcda66ba/A_Ordem_do_Discurso.html



(L’Ordre du discours, Leçon inaugurale ao Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Éditions Gallimard, Paris, 1971.)


'O desejo diz: "Eu, eu não queria ser obrigado a entrar nessa ordem incerta do discurso; não queria ter nada que ver com ele naquilo que tem de peremptório e de decisivo; queria que ele estivesse muito próximo de mim como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, e que os outros respondessem à minha expectativa, e que as verdades, uma de cada vez, se erguessem; bastaria apenas deixar-me levar, nele e por ele, como um barco à deriva, feliz."'

'E a instituição responde: "Tu não deves ter receio em começar; estamos aqui para te fazer ver que o discurso está na ordem das leis; que sempre vigiámos o seu aparecimento; que lhe concedemos um lugar, que o honra, mas que o desarma; e se ele tem algum poder, é de nós, e de nós apenas, que o recebe."'

"Mas talvez esta instituição e este desejo não sejam mais do que duas réplicas a uma mesma inquietação: inquietação face àquilo que o discurso é na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação face a essa existência transitória destinada sem dúvida a apagar-se, mas segundo uma duração que não nos pertence; inquietação por sentir nessa actividade, quotidiana e banal porém, poderes e perigos que sequer adivinhamos; inquietação por suspeitarmos das lutas, das vitórias, das feridas, das dominações, das servidões que atravessam tantas palavras em cujo uso há muito se reduziram as suas rugosidades."

"suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada e temível materialidade."

"É claro que sabemos, numa sociedade como a nossa, da existência de procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o interdito. Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja. Tabu do objecto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: jogo de três tipos de interditos que se cruzam, que se reforçam ou que se compensam, formando uma grelha complexa que está sempre a modificar-se. Basta-me referir que, nos dias que correm, as regiões onde a grelha mais se aperta, onde os quadrados negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: longe de ser um elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, é como se o discurso fosse um dos lugares onde estas regiões exercem, de maneira privilegiada, algumas dos seus mais temíveis poderes. O discurso, aparentemente, pode até nem ser nada de por aí além, mas no entanto, os interditos que o atingem, revelam, cedo, de imediato, o seu vínculo ao desejo e o poder. E com isso não há com que admirarmo-nos: uma vez que o discurso — a psicanálise mostrou-o —, não é simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que é objecto do desejo; e porque — e isso a história desde sempre o ensinou — o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos."

"Há na nossa sociedade outro princípio de exclusão: não já um interdito, mas uma partilha e uma rejeição. Desde os arcanos da Idade Média que o louco é aquele cujo discurso não pode transmitir-se como o dos outros [...]ou, como reverso de tudo isto, e por oposição a outra palavra qualquer, são-lhe atribuídos estranhos poderes: o de dizer uma verdade oculta, o de anunciar o futuro, o de ver, com toda a credulidade, aquilo que a sagacidade dos outros não consegue atingir. [...] na Europa, durante séculos, a palavra do louco, ou não era ouvida, ou então, se o era, era ouvida como uma palavra verdadeira. Ou caía no nada — rejeitada de imediato logo que proferida; ou adivinhava-se nela uma razão crédula ou subtil, uma razão mais razoável do que a razão das pessoas razoáveis. [...] Era por intermédio das suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; essas palavras eram o lugar onde se exercia a partilha; mas nunca eram retidas ou escutadas."

"[...] basta pensar em toda a armadura de saber por intermédio da qual nós deciframos essas palavras; basta pensar na rede de instituições que permite a qualquer um — médico, psicanalista — escutar essa palavra, e que permite simultaneamente ao paciente trazer, ou desesperadamente reter, as suas próprias palavras; basta pensar em tudo isso para suspeitar que a partilha, longe de se ter apagado, se exerce de outra maneira, através de linhas diferentes, por intermédio de novas instituições e com efeitos que não já os mesmos."

"[...]Como é que se pode razoavelmente comparar o constrangimento da verdade com as partilhas referidas, partilhas que à partida são arbitrárias, ou que, quando muito, se organizam em torno de contingências históricas; que não são apenas modificáveis, mas estão em perpétuo deslocamento; que são sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõem e as reconduzem; que, ao fim e ao cabo, não se exercem sem constrangimento, ou pelo menos sem um pouco de violência."

"[...]colocando-nos, no interior de um discurso, ao nível de uma proposição, a partilha entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas, numa outra escala, se nos pusermos a questão de saber, no interior dos nossos discursos, qual foi, qual é, constantemente, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos da nossa história, ou, na sua forma muito geral, qual o tipo de partilha que rege a nossa vontade de saber, então talvez vejamos desenhar-se qualquer coisa como um sistema de exclusão (sistema histórico, modificável, institucionalmente constrangedor)."

"[...]ainda nos poetas gregos do século VI, o discurso verdadeiro — no sentido forte e valorizado da palavra —, o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, ao qual era necessário submeter-se, porque reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido; era o discurso que dizia a justiça e atribuía a cada um a sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não apenas anunciava o que haveria de passar-se, mas contribuía para a sua realização, obtinha a adesão dos homens e desse modo se entretecia com o destino. [...] um século mais tarde, a maior das verdades já não estava naquilo que o discurso era ou naquilo que fazia, mas sim naquilo que o discurso dizia: chegou porém o dia em que a verdade se deslocou do acto ritualizado de enunciação, eficaz e justo, para o próprio enunciado: para o seu sentido, a sua forma, o seu objecto, a sua relação à referência. Entre Hesíodo e Platão uma certa partilha se estabeleceu, separando o discurso verdadeiro e o discurso falso; nova partilha, uma vez que daí em diante o discurso verdadeiro deixa de ser o discurso valioso e desejável, uma vez que o discurso verdadeiro já não é o discurso ligado ao exercício do poder. O sofista é encurralado."

"Sem dúvida que esta partilha histórica deu à nossa vontade de saber a sua forma geral. Não deixou porém de deslocar-se: as grandes mutações científicas podem talvez ler-se, por vezes, enquanto consequências de uma descoberta, mas podem ler-se também como aparecimentos de novas formas da vontade de verdade. [...] na viragem do século XVI para o século XVII (e na Inglaterra sobretudo) apareceu uma vontade de saber que, antecipadamente em relação aos seus conteúdos actuais, concebia planos de objectos possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis; uma vontade de saber que impunha ao sujeito que conhece (e de algum modo antes de toda a experiência) uma certa posição, um certo olhar e uma certa função (ver em vez de ler, verificar em vez de comentar); uma vontade de saber que prescrevia (e de um modo mais geral do que qualquer instrumento determinado) o nível técnico onde os conhecimentos deveriam investir-se para serem verificáveis e úteis."

"Ora esta vontade de verdade, tal como os outros sistemas de exclusão, apoia-se numa base institucional: ela é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, claro, o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas é também reconduzida, e de um modo mais profundo sem dúvida, pela maneira como o saber é disposto numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e, de certa forma, atribuído. Evoquemos aqui, e a título simbólico somente, o antigo princípio grego: a aritmética é tratada nas sociedades democráticas, porque ensina as relações de igualdade, mas a geometria apenas deve ser ensinada nas oligarquias, dado que demonstra as proporções na desigualdade."

"E creio que esta vontade de verdade, por fim, apoiando-se numa base e numa distribuição institucionais, tende a exercer sobre os outros discursos — continuo a falar da nossa sociedade — uma espécie de pressão e um certo poder de constrangimento."

"[...]o que é que, no entanto, está em jogo na vontade de verdade, na vontade de o dizer, de dizer o discurso verdadeiro — o que é que está em jogo senão o desejo e o poder?"

"[...] os nossos olhos só vêem uma verdade que é riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E, ao invés, não vemos a vontade de verdade enquanto prodigiosa maquinaria destinada a excluir."

"Evidentemente que há outros procedimentos de controlo e de delimitação do discurso. Aqueles de que falei até agora exercem-se, de algum modo, a partir do exterior; funcionam como sistemas de exclusão; dizem respeito sem dúvida à parte do discurso em que estão implicados o poder e o desejo."

"[...] Procedimentos internos, dado que são os próprios discursos a exercer o seu controlo; procedimentos que funcionam sobretudo enquanto princípios de classificação, de ordenamento, de distribuição, como se se tratasse, agora, de dominar uma outra dimensão do discurso: a do acontecimento e a do acaso."

"[...]pode suspeitar-se que há nas sociedades, de um modo muito regular, uma espécie de desnível entre os discursos: os discursos que "se dizem" ao correr dos dias e das relações, discursos que se esquecem no próprio acto que lhes deu origem; e os discursos que estão na origem de um certo número de novos actos de fala, actos que os retomam, os transformam ou falam deles, numa palavra, os discursos que, indefinidamente e para além da sua formulação, são ditos, ficam ditos, e estão ainda por dizer.Sabemos da sua existência no nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou jurídicos, são também esses textos curiosos, quando pensamos no seu estatuto, a que se chama "literários"; e numa certa medida também, os textos científicos."

"Não há, por um lado, a categoria dos discursos fundamentais ou criadores, dada de uma vez para sempre; e não há, por outro lado, a massa dos outros que repetem, glosam e comentam. Há muitos textos maiores que se dispersam e desaparecem, e há comentários que por vezes vêm ocupar o lugar primordial. Mas se é verdade que os seus pontos de aplicação podem mudar, a função permanece.[...] O apagamento radical deste desnível não pode ser senão jogo, utopia ou angústia.

[...]

"[...] o pendor do discurso primeiro, a sua permanência, o seu estatuto de discurso sempre reactualizável, o sentido múltiplo ou escondido de que ele passa por ser o detentor, a reserva ou a riqueza essencial que lhe são atribuídas, tudo isso funda uma possibilidade aberta de falar. Mas por outro lado, quaisquer que sejam as técnicas usadas, o comentário não tem outro papel senão o de dizer finalmente aquilo que estava silenciosamente articulado no texto primeiro. O comentário deve, num paradoxo que ele desloca sempre mas de que nunca se livra, dizer pela primeira vez aquilo que já tinha sido dito entretanto, e repetir incansavelmente aquilo que, porém, nunca tinha sido dito. [...] O comentário, ao dar conta das circunstâncias do discurso, exorciza o acaso do discurso."

"Julgo que há um outro princípio de rarefacção do discurso. [...] Trata-se do autor. Entendido o autor, claro, não como o indivíduo que fala, o indivíduo que pronunciou ou escreveu um texto, mas como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem das suas significações, como lastro da sua coerência. [...] existem, à nossa volta, muitos discursos que circulam sem que o seu sentido ou a sua eficácia estejam em poder de um autor, a que seriam atribuídos: palavras do dia a dia, que se apagam de imediato; decretos ou contratos que têm necessidade de signatários, mas não de autor, receitas técnicas que se transmitem no anonimato. Mas nos domínios em que a atribuição a um autor é usual — literatura, filosofia, ciência — vemos que essa atribuição não desempenha sempre o mesmo papel; na ordem do discurso científico, a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois era um indicador de verdade. [...] Desde o século XVIII que esta função se tem vindo a atenuar no discurso científico: já não funciona senão para dar um nome a um teorema, a um efeito, a um exemplo, a um síndroma. Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função do autor tem vindo a reforçar-se: a todas essas narrativas, a todos esses poemas, a todos esses dramas ou comédias que circulavam na Idade Média num anonimato mais ou menos relativo, a todos eles é-lhes agora perguntado (e exige-se-lhes que o digam) donde vêm, quem os escreveu."

[...]

"[...] Mas eu penso — e isto pelo menos a partir de uma certa época — que o indivíduo que começa a escrever um texto, no horizonte do qual gira uma obra possível, retoma à sua conta a função do autor."

"O comentário limitava o acaso do discurso com o jogo de uma identidade que tinha a forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso com o jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu."

"Será necessário também reconhecer naquilo a que se chama as "disciplinas" — não as ciências — um outro princípio de limitação. Princípio esse também relativo e móvel. Princípio que permite construir, mas com base num jogo delimitado."

"A organização das disciplinas opõe-se tanto ao princípio do comentário quanto ao do autor. Ao do autor, uma vez que uma disciplina se define por um domínio de objectos, um conjunto de métodos, um corpo de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anónimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que o seu sentido ou a sua validade estejam ligados ao seu inventor. Mas o princípio da disciplina opõe-se também ao do comentário: numa disciplina, diferentemente do comentário, não está suposto à partida que é um sentido o que deve ser redescoberto, nem está suposto que é uma identidade que deve ser repetida; está suposto antes aquilo que é necessário para a construção de novos enunciados. Para que haja disciplina, é preciso, por conseguinte, que haja a possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, novas proposições."

"[...] a botânica ou a medicina, como qualquer outra disciplina, são feitas tanto de erros quanto de verdades, erros que não são resíduos ou corpos estranhos, mas que têm funções positivas, uma eficácia histórica, um papel muitas vezes indistinto do das verdades. Mas por outro lado, para que uma proposição pertença à botânica ou à patologia, é preciso que ela responda a condições que em certo sentido são mais estritas e mais complexas do que a pura e simples verdade.[...] A proposição deve dirigir-se a um plano de objectos determinado. [...] Mas, não pertencendo a uma disciplina, uma proposição deve utilizar instrumentos conceptuais ou técnicas de um tipo definido; a partir do século XIX, uma proposição deixava de ser uma proposição de medicina, ficava "fora da medicina" e ganhava um valor de fantasma individual ou de fantasia popular, se empregasse noções ao mesmo tempo metafóricas, qualitativas e substanciais (como as de obstrução, líquidos aquecidos ou sólidos ressequidos); ela podia, ela devia apelar, pelo contrário, a noções igualmente metafóricas, mas construídas com base noutro modelo, funcional e fisiológico este (era a irritação, a inflamação ou a degenerescência dos tecidos). Há mais ainda: para pertencer a uma disciplina, uma proposição deve poder inscrever-se num certo tipo de horizonte teórico."

'[...] Numa palavra, uma proposição tem de passar por complexas e pesadas exigências para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de se poder dizê-la verdadeira ou falsa, ela deve estar, como diria Canguilhem, "no verdadeiro".'

"Perguntámo-nos muitas vezes como é que os botânicos e os biólogos do século XIX não puderam ver que era verdadeiro o que Mendel dizia. Mas Mendel falava de objectos, usava métodos, colocava-se num horizonte teórico que eram estranhos à biologia da sua época. [...] Mendel dizia a verdade, mas não estava "no verdadeiro" do discurso biológico da sua época: não era com base nessas regras que se formavam os objectos e os conceitos biológicos; para que Mendel entrasse no verdadeiro e para que as suas proposições surgissem (em boa parte) exactas foi necessário toda uma mudança de escala, o desenvolvimento de todo um novo plano de objectos em biologia. [...] ao passo que Schleiden, por exemplo, cerca de trinta anos antes, ao negar a sexualidade vegetal em pleno século XIX, fazia-o segundo as regras do discurso biológico e com isso formulava apenas um erro disciplinado. [...] não se está no verdadeiro sem que se obedeça às regras de uma "polícia" discursiva que temos de reactivar em cada um dos seus discursos."

"A disciplina é um princípio de controlo da produção do discurso. Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualização permanente das regras."

"Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, recursos infinitos para a criação dos discursos. Talvez, mas não deixam de ser princípios de constrangimento; e é provável que não se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se não tomarmos em consideração a sua função restritiva e constrangedora."

"Existe, creio, um terceiro grupo de procedimentos que permitem o controlo dos discursos. [...] trata-se de determinar as condições do seu emprego, de impor aos indivíduos que os proferem um certo número de regras e de não permitir, desse modo, que toda a gente tenha acesso a eles. [...] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer certas exigências, ou se não estiver, à partida, qualificado para o fazer. [...] as regiões do discurso não estão todas igualmente abertas e penetráveis; algumas estão muito bem defendidas (são diferenciadas e são diferenciantes), enquanto outras parecem abertas a todos os ventos e parecem estar colocadas à disposição de cada sujeito falante sem restrições prévias."

Anedota sobre o tema "No início do século XVII, o Shogun tinha ouvido dizer que a superioridade dos europeus — na navegação, no comércio, na política, na arte militar — era devida ao conhecimento das matemáticas. Quis apoderar-se desse saber tão precioso. Como lhe tinham falado de um marinheiro inglês que possuía o segredo desses discursos maravilhosos, fê-lo vir ao seu palácio e aí o reteve. A sós com ele, recebeu lições. Aprendeu as matemáticas. Guardou para si próprio o poder destas e viveu até muito velho. Só houve matemáticos japoneses no século XIX. Mas a anedota não fica por aqui: tem a sua vertente européia. Com efeito, a história pretende que o marinheiro inglês, Will Adams, era um autodidacta: um carpinteiro que, por ter trabalhado num estaleiro naval, tinha aprendido geometria. Será necessário ver nesta narrativa a expressão de um dos grandes mitos da cultura européia? Ao saber monopolizado e secreto da tirania oriental, a Europa oporia a comunicação universal do conhecimento, o intercâmbio indeterminado e livre dos discursos."

"[...] A forma mais superficial e mais visível destes sistemas de restrição é constituída por aquilo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo do diálogo, na interrogação, na recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de sinais que devem acompanhar o discurso; o ritual fixa, por fim, a eficácia, suposta ou imposta, das palavras, o seu efeito sobre aqueles a quem elas se dirigem, os limites do seu valor constrangedor. Os discursos religiosos, jurídicos, terapêuticos, e em parte também os políticos, não são dissociáveis desse exercício de um ritual que determina para os sujeitos falantes, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis convenientes."

"Com um funcionamento que é em parte diferente, as "sociedades de discurso" têm por função conservar ou produzir discursos, mas isso para os fazer circular num espaço fechado, e para os distribuir segundo regras estritas, sem que os detentores do discurso sejam lesados com essa distribuição. Um dos modelos arcaicos disto é-nos dado pelos grupos de rapsodos que detinham o conhecimento dos poemas a recitar, ou eventualmente a fazer variar e transformar; mas ainda que o fim deste conhecimento fosse uma recitação que era afinal de contas ritual, ele estava — pelos exercícios de memória, muitas vezes complexos, que implicava — protegido, defendido e conservado num grupo determinado; a aprendizagem dava acesso, ao mesmo tempo, a um grupo e a um segredo que a recitação manifestava, mas não divulgava; não se trocavam os papéis entre a fala e a escuta."

"Claro que já não existem semelhantes "sociedades de discurso", com este jogo ambíguo do segredo e da divulgação. Mas não nos enganemos; mesmo na ordem do discurso verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado e liberto de todo o ritual, exercem-se ainda formas de apropriação do segredo e de não-intermutabilidade. Talvez o acto de escrever, tal como está hoje institucionalizado no livro, no sistema da edição e na personagem do escritor, seja um acto que se dá numa "sociedade de discurso", difusa talvez, mas seguramente constrangedora. [...] Mas existem muitas outras, que funcionam de outro modo, segundo um outro regime de exclusivos e de divulgação: pensemos no segredo técnico ou científico, pensemos nas formas de difusão e de circulação do discurso médico; pensemos naqueles que se apropriaram do discurso económico e político."

"O que constitui as doutrinas (religiosas, políticas, filosóficas) é, à primeira vista, o inverso de uma "sociedade de discurso": nesta, o número dos indivíduos falantes, mesmo quando não estava fixado, tendia a ser limitado; e era entre eles que o discurso podia circular e ser transmitido. A doutrina, pelo contrário, tende a difundir-se; e é pelo pôr em comum de um único conjunto de discursos, que os indivíduos, tão numerosos quanto o quisermos imaginar, definem a sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de uma certa regra — mais ou menos flexível — de conformidade com os discursos validados; se as doutrinas fossem apenas isto, elas não seriam diferentes das disciplinas científicas, e o controlo discursivo diria respeito unicamente à forma ou ao conteúdo do enunciado, não ao sujeito falante. Ora, a pertença doutrinal põe em causa ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito falante, e um por intermédio do outro. Põe em causa o sujeito falante por intermédio e a partir do enunciado [...]; heresia e ortodoxia pertencem-lhes fundamentalmente. A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e interdita-lhes, por conseguinte, todos os outros; mas, em reciprocidade, serve-se de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si, e desse modo os diferenciar de todos os outros. Ela efectua uma dupla sujeição: dos sujeitos falantes ao discurso, e dos discursos ao grupo, pelo menos virtual, dos indivíduos falantes."

"Finalmente, numa escala muito maior, podem reconhecer-se grandes clivagens naquilo a que se poderia chamar a apropriação social dos discursos. [...] Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem consigo."

"O que é, no fim de contas, um sistema de ensino senão uma ritualização da fala, senão uma qualificação e uma fixação dos papéis dos sujeitos falantes; senão a constituição de um grupo doutrinal, por difuso que seja; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com os seus poderes e os seus saberes? O que é a "escrita" (a dos "escritores") senão um sistema de sujeição semelhante, que assume talvez formas um pouco diferentes, mas em que as grandes decomposições são análogas? Será que o sistema jurídico, o sistema institucional da medicina, também eles, pelo menos em alguns dos seus aspectos, não são sistemas semelhantes de sujeição do discurso?"

"Pergunto-me se um certo número de temas da filosofia não vieram responder a estes jogos de limitação e exclusão, e, talvez também, reforçá-los."

"Vieram responder-lhes, primeiro, ao proporem uma verdade ideal enquanto lei do discurso e uma racionalidade imanente enquanto princípio do seu encadeamento. [...]"

[...]

[...]

"[...] O sujeito fundador, com efeito, está encarregue de animar directamente com as suas pretensões as formas vazias da língua; é ele que, ao atravessar a espessura ou a inércia das coisas vazias, capta, na intuição, o sentido que se encontra aí depositado; é ele igualmente que, para além do tempo, funda horizontes de significação que a história em seguida só terá de explicitar, horizontes onde as proposições, as ciências, as unidades dedutivas encontrarão no fim de contas o seu fundamento. Na sua relação com o sentido, o sujeito fundador dispõe de sinais, de marcas, de vestígios, de letras. Mas para os manifestar não tem necessidade de passar pela instância singular do discurso."

"[...] As coisas murmuram já um sentido que a nossa linguagem apenas tem de erguer. [...]"

"Creio que o tema da mediação universal é também uma maneira de elidir a realidade do discurso. [...] O discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade que está sempre a nascer diante dos seus olhos; e por fim, quando tudo pode tomar a forma do discurso, quando tudo se pode dizer e o discurso se pode dizer a propósito de tudo, é porque todas as coisas que manifestaram e ofereceram o seu sentido podem reentrar na interioridade silenciosa da consciência de si."

"Por conseguinte, quer seja numa filosofia do sujeito fundador, numa filosofia da experiência originária ou numa filosofia da mediação universal, o discurso não passa de um jogo, jogo de escrita no primeiro caso, de leitura no segundo, de intercâmbio no terceiro caso — e este intercâmbio, esta leitura e esta escrita somente põem em acção os signos. Na sua realidade, ao ser colocado na ordem do significante, o discurso anula-se."

"Aparentemente, que civilização respeitou mais o discurso do que a nossa? [...] parece-me que sob esta aparente veneração do discurso, sob esta aparente logofilia, esconde-se uma espécie de temor. Tudo se passa como se os interditos, as barragens, as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que, ao menos em parte, a grande proliferação do discurso seja dominada, de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que é mais incontrolável. [...]"

"E se quisermos — não digo elimina esse temor — mas analisar as suas condições, o seu jogo e os seus efeitos, é preciso, creio, resolvermo-nos a tomar três decisões, em relação às quais o nosso pensamento, hoje, resiste um pouco, e que correspondem aos três grupos de funções que acabo de mencionar: interrogar a nossa vontade de verdade; restituir ao discurso o seu carácter de acontecimento; finalmente, abandonar a soberania do significante."

[...]

EXIGÊNCIA DE MÉTODOS:

"[...] princípio de inversão: onde julgamos reconhecer, segundo a tradição, a fonte dos discursos, onde julgamos reconhecer o princípio da sua fusão e da sua continuidade, nessas figuras que parecem desempenhar um papel positivo, como a do autor, a da disciplina, a da vontade de verdade, é necessário reconhecer nelas, em vez disso, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefacção do discurso."

"Mas, uma vez desvendados os princípios de rarefacção, uma vez que os deixámos de considerar como instância fundamental e criadora, o que é que se descobre debaixo deles? Será necessário admitir a plenitude virtual de um mundo de discursos ininterruptos? É aqui que é necessária a intervenção de outros princípios de método."

"[...] princípio de descontinuidade: [...] Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que se cruzam, que às vezes se justapõem, mas que também se ignoram ou se excluem."

"[...] princípio de especificidade: não dissolver o discurso num jogo de significações prévias; não imaginar que o mundo nos mostra uma face legível que apenas teríamos de decifrar; ele não é cúmplice do nosso conhecimento; não há uma providência pré-discursiva que o volte para nós. É necessário conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, em todo o caso como uma prática que lhes impomos; e é nessa prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio da sua regularidade."

"da exterioridade: não ir do discurso até ao seu núcleo interior e escondido, até ao centro de um pensamento ou de uma significação que nele se manifestasse; mas, a partir do próprio discurso, do seu aparecimento e da sua regularidade, ir até às suas condições externas de possibilidade, até ao que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e que lhes fixa os limites."

"[...] Vemos que [as] noções estão em oposição, termo a termo, a outras: o acontecimento à criação, a série à unidade, a regularidade à originalidade, e a condição de possibilidade à significação. Estas quatro últimas noções (significação, originalidade, unidade, criação) têm dominado, de uma maneira geral, a história tradicional das idéias, na qual, de comum acordo, se procura o ponto da criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indeterminado das significações ocultas."

"[...]Mas o importante é que a história não considere um acontecimento sem definir a série de que ele faz parte, sem especificar o modo de análise de que esta série depende, sem procurar conhecer a regularidade dos fenômenos e os limites de probabilidade da sua emergência, sem se interrogar sobre as variações, as inflexões e o comportamento da curva, sem determinar a condições de que elas dependem. [...] As noções fundamentais que agora se impõem não são as da consciência e da continuidade (com os problemas da liberdade e da causalidade que lhes são correlativos), já não são as do signo e da estrutura. São as do acontecimento e da série, com o jogo de noções que lhes estão ligadas; regularidade, acaso, descontinuidade, dependência, transformação; é por intermédio deste conjunto de noções que esta análise do discurso se articula com o trabalho dos historiadores e de maneira nenhuma com a temática tradicional que os filósofos de ontem tomam ainda por história "viva"."

"[...]Se os discursos devem ser tratados em primeiro lugar enquanto conjuntos de acontecimentos discursivos, qual o estatuto que é preciso dar à noção de acontecimento, que muito raramente foi tida em consideração pelos filósofos? Claro que o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Mas, mesmo assim, de modo nenhum o acontecimento é imaterial; é sempre ao nível da materialidade que ele adquire efeito, que ele é efeito; e consiste, tem o seu lugar, na relação, na coexistência, na dispersão, no recorte, na acumulação, na selecção de elementos materiais; o acontecimento não é nem o acto, nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de uma dispersão material, e produz-se numa dispersão material. [...]"

"Por outro lado, se os acontecimentos discursivos devem ser tratados segundo séries homogéneas mas descontínuas umas em relação às outras, qual o estatuto que é necessário dar a este descontínuo? [...] trata-se de cesuras que quebram o instante e o dispersam numa pluralidade de posições e de funções possíveis. Esta descontinuidade atinge e invalida as mais pequenas unidades tradicionalmente reconhecidas ou as que menos facilmente são contestadas: o instante e o sujeito. [...] é preciso conceber relações entre as séries descontínuas que não são da ordem da sucessão (ou da simultaneidade) numa (ou várias) consciência ; é preciso elaborar — fora das filosofias do sujeito e do tempo — uma teoria das sistematizações descontínuas. [...] não é possível estabelecer, entre os elementos que as constituem [as séries discursivas e descontínuas], vínculos de causalidade mecânica ou de necessidade ideal. É preciso aceitar, na produção dos acontecimentos, a introdução do acaso como categoria. Mais uma vez se sente aí a ausência de uma teoria que permita pensar as relações do acaso com o pensamento."

"[...] tratar dos discursos enquanto séries regulares e distintas de acontecimentos e não em tratar das representações que possam existir atrás dos discursos, nesse pequeno desnível, receio reconhecer qualquer coisa como uma pequena (e odiosa talvez) maquinaria que permite introduzir na própria raiz do pensamento o acaso, o descontínuo e a materialidade. Triplo perigo que uma certa forma de história procura conjurar narrando o contínuo desdobrar de uma necessidade ideal. [...]"

"Ao seguir estes princípios e ao ater-me a este horizonte, as análises que me proponho fazer dispõem-se em duas perspectivas. De um lado, a perspectiva "crítica", que põe em ação o princípio de inversão: procurar distinguir as formas de exclusão, de limitação e de apropriação a que me referi atrás; mostrar como é que se formaram, a que necessidades vieram responder, como é que se modificaram e deslocaram, qual o constrangimento que exerceram efetivamente, em que medida é que foram modificadas. De outro lado, a perspectiva "genealógica", que põe em ação os outros três princípios: como é que se formaram as séries de discurso, se por intermédio, ou com o apoio, ou apesar dos sistemas de exclusão; qual foi a norma específica de cada série e quais foram as suas condições de aparecimento, de crescimento, de variação."

"[...] analisar a economia interna de um discurso de forma completamente diferente da exegese tradicional ou do formalismo lingüístico; [...] assinalar, pelo jogo das comparações, de um discurso a outro, o sistema das correlações funcionais; [...] descrever as transformações de um discurso e as relações com a instituição. [...]"

[...]

[...]

[...]

"[...] Para Hyppolite, a relação com Hegel era o lugar de uma experiência, de um afrontamento em que nunca há a certeza de que a filosofia saia vencedora. Ele não se servia do sistema hegeliano como se se tratasse de um universo de certeza; via nele o risco extremo da filosofia."

"[...] Em vez de conceber a filosofia enquanto totalidade que finalmente é capaz de se pensar a si própria e de se reapropriar no movimento do conceito, J.Hyppolite fazia filosofia tendo como fundo um horizonte infinito, uma tarefa sem termo: levantando-se sempre cedo, a sua filosofia nunca estava à beira de se concluir ao fim do dia. [...] a filosofia, para J.Hyppolite, enquanto pensamento inacessível da totalidade, era o que podia haver de repetível na extrema irregularidade da experiência; [...] se a filosofia está nesse repetido contato com a não-filosofia, o que é o começo da filosofia? Será que a filosofia já está aí, secretamente presente naquilo que não é filosofia, começando a formular-se a meia voz no murmúrio das coisas? [...] talvez o discurso filosófico não tenha razão de ser; ou deve começar com uma fundação simultaneamente arbitrária e absoluta? [...]"

"[...] se a filosofia deve começar como discurso absoluto, o que é que se passará com a história, e que começo é esse que começa com um indivíduo singular, numa sociedade, numa classe social, no meio das lutas?"

[...]

[.......]

"FIM"

Moon River


Download - Moon River (Henry Mancini):





"Moon river, wider than a mile
I'm crossin' you in style some day
Old dream maker, you heartbreaker
Wherever you're goin', I'm goin' your way

Two drifters, off to see the world
There's such a lot of world to see
We're after the same rainbow's end, waitin' 'round the bend
My huckleberry friend, Moon River, and me"

Corsário

Download: João Bosco - Corsário

http://www.4shared.com/file/143568123/c6f8b5c7/Joo_Bosco_-_Corsario.html



"Meu coração tropical
está coberto de neve, mas
ferve em seu cofre gelado
e à voz vibra e a mão escreve mar...

Bendita lâmina grave
que fere a parede e traz
as febres loucas e breves
que mancham o silêncio
e o cais.

Roserais
Nova granada de Espanha...
Por você, eu, teu corsário preso!

Vou partir na geleira azul
da solidão
e buscar a mão do mar,
me arrastar até o mar,
procurar o mar.

Mesmo que eu mande em garrafas
mensgens por todo o mar,
meu coração tropical
partirá esse gelo e irá.

Com as garrafas de náufrago
e as rosas partindo o ar,
nova granada de Espanha
e as rosas partindo o ar."

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Esse sim, por mais raro que seja, é o amor que fica.

"Sei
que a poesia
está para a prosa
assim como
o amor
está para
a amizade.

E quem há de negar que esta lhe é superior?"




Uma das frases mais sábias do meu poeta Caetano.


Aos momentos mais autênticos que vivi.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Um tapinha dói.

- Dói.

Um tapinha, não.

Dói, um tapinha dói.

Um tapinha, não.


-Só um tapinha?


- Dói.

Sometimes...





Às vezes, não é nada.

Às vezes, é neurose.

Às vezes, é injusto.

Às vezes, é preciptado.

Às vezes, é engano.

Às vezes, é preconceito.

Às vezes, é insegurança.

Às vezes, é ciúme.

Às vezes, é exagero.

Às vezes, é ansiedade.



Mas, às vezes, não.


E, quando às vezes não, é foda.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

* Eu e a Brisa *

http://www.4shared.com/file/142072681/73317937/12_u_e_a_Brisa.html


"Ah,

se a juventude que essa brisa traz

ficasse aqui comigo mais um pouco,

eu poderia esquecer da dor

de ser tão só, pra ser um sonho!

Daí, então, quem sabe,

alguém chegasse buscando um sonho

em forma de desejo:

felicidade, então, pra nós, seria!


E depois que a tarde nos trouxesse a lua,

se o amor chegasse, eu não resistiria

e a madrugada acalentaria a nossa paz.

Fica!

Oh, brisa, fica, pois, talvez, quem sabe,

o inesperado faça uma surpresa

e traga alguém que queira te escutar

e junto a mim queira ficar!"

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Introdução à vida não fascista







Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por wanderson flor do nascimento.

Durante os anos 1945-1965 (falo da Europa), existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os sistemas de signos - e significantes - com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época.
Depois, vieram cinco anos breves, apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo, o Vietnã, o primeiro golpe em direção aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior de nossos muros, o que exatamente se passa? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada por dois frontes - a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. De todo modo, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a Primeira Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, teve sob seus encantos as frações mais utopistas da Europa - a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas - retornou para abraçar a realidade mesma: Marx e Freud esclarecidos pela mesma incandescência.
Mas é isso mesmo o que se passou? Era uma retomada do projeto utópico dos anos trinta, desta vez, na escala da prática social? Ou, pelo contrário, houve um movimento para lutas políticas que não se conformavam mais ao modelo prescrito pela tradição marxista? Para uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.
O Anti-Édipo mostra, pra começar, a extensão do terreno ocupado. Porém, ele faz muito mais. Ele não se dissipa no denegrimento dos velhos ídolos, mesmo se divertindo muito com Freud. E, sobretudo, nos incita a ir mais longe.
Seria um erro ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica (vocês sabem, essa famosa teoria que se nos costuma anunciar: essa que vai englobar tudo, essa que é absolutamente totalizante e tranquilizadora, essa, nos afirmam, “que tanto precisamos” nesta época de dispersão e de especialização, onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso buscar uma “filosofia” nesta extraordinária profusão de novas noções e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel pomposo. Penso que a melhor maneira de ler o Anti-Édipo é abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de acoplamentos, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas. Questões que surgem menos do porque das coisas do que de seu como. Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.
Daí os três adversários aos quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por meios diferentes.
1) Os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, esses que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.
2) Os lastimáveis técnicos do desejo - os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.
3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do Anti-Édipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.
Eu diria que o Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França depois de muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não é limitado a um “leitorado” [“lectorat”] particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.
Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, se poderia dizer que o Anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista.[1]
Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
- Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;
- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;
- Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;
- Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;
- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
- Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;
- Não caia de amores pelo poder.
Poder-se-ia dizer que Deleuze e Guattari amam tão pouco o poder que eles buscaram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Por isso os jogos e as armadilhas que se encontram espalhados em todo o livro, que fazem de sua tradução uma verdadeira façanha. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, essas que buscam seduzir o leitor, sem que ele esteja consciente da manipulação, e que finda por assumir a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são as do humor: tanto os convites a se deixar expulsar, a despedir-se do texto batendo a porta. O livro faz pensar que é apenas o humor e o jogo aí onde, contudo, alguma coisa de essencial se passa, alguma coisa que é da maior seriedade: a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas.
Download do texto:
http://www.4shared.com/file/143844166/5e767b4a/Introduo__vida_no_fascista.html