sexta-feira, 13 de maio de 2011

Overdose = Suicídio ?

Nunca vi ninguém que, ao cheirar cocaína pela primeira vez, morreu de overdose. Cada um sabe o que deseja para si e, ao desejo, nada falta. Paremos de afirmar que a vida é coisa mais importante do mundo, uma preciosidade e que querer não-viver é absurdo. A vontade de deixar de existir é legítima e haja coragem para consumá-la. E parem...os também com essa história de que a pessoa que se matou está descansando em paz em outro lugar, pois quem se mata não quer descansar, quer, nem que por um instante, morrer. E que desamor para com essa pessoa desejando-lhe que esteja onde quer que seja se ela, na verdade, não gostaria mais de estar em lugar algum. Quem quer descansar vai prum spar, vai pra Europa, pra uma praia paradisíaca ou, na falta de dinheiro, pra itapuã dia de domingo. Uma pessoa que está acostumada a tomar remédio controlado ou a usar cocaína ou qualquer outra substância que, em excesso e misturada, pode levar a morte, e excede no uso daquilo, repito, que já conhece, não quer "aliviar as dores da vida". Quem quer aliviar as dores da vida faz um escândalo; desconta o ódio no caixa do supermercado; toma um rivotril/lexotan etc. e dorme; chora copiosamente para, no instante seguinte, descobrir que a vida é boa; bebe até cair; dá um murro na cara de quem, naquele instante, odeia. Quem quer aliviar as dores da vida alivia (ou não), mas não morre. Porque, repito, nunca vi alguém que, ao cheirar cocaína pela primeira vez, morreu de overdose. E paremos de desconfiar da hipótese de que alguém muito feliz e sorridente, muito talentoso, muito bonito, muito rico, muito bem sucedido (que termo escroto, hein) etc. se suicidou. Como deve se vestir, comportar, falar, olhar, agir, socialmente, um suicida? Deixemos de ingenuidade. Cada um sabe a altura do prédio que pula; nem que por um instante.
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Trecho de poema de Fernando Pessoa pra ilustrar:

"O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum.

[...]


É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas."


...............

sexta-feira, 6 de maio de 2011

...um pedregulho

p       e       r       d       i       d       o

na estepe...









(um pedregulho é diferente de uma rocha)

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Gilles Deleuze - "I" de idéia.




"I" de idéia. O que é ter uma idéia?

Demonstração com o cinema e Vicent Minnelli, o cavaleiro dos sonhos.


A idéia no sentido em que a usamos, pois não se trata mais de Platão, atravessa todas as atividades criadoras. Criar é ter uma idéia. É muito difícil ter uma idéia. Há pessoas extremamente interessantes que passaram a vida inteira sem ter uma idéia. Pode-se ter uma idéia em qualquer área. Não sei onde não se deve ter idéias. Mas é raro ter uma idéia. Não acontece todos os dias. Um pintor tem tantas idéias quanto um filósofo, mas não são o mesmo tipo de idéias. Pensando nas diferentes atividades humanas, seria bom saber: sob que forma se apresenta uma idéia em determinados casos? Em filosofia, acabamos de ver isso. A idéia em filosofia se apresente na forma de conceitos. Há uma criação de conceitos e não uma descoberta. Conceitos não se descobrem, são criados. Há tanta criação em uma filosofia quanto em um quadro ou uma obra musical. Fico impressionado com os diretores de cinema. Há muitos diretores que nunca tiveram uma idéia. As idéias são uma obsessão: elas vão e voltam, se afastam, tomam formas diversas e, através destas formas variadas, elas são reconhecíveis. Para dar um exemplo muito simples, penso em um diretor como Vicent Minnelli. A obra dele não cobre tudo, mas peguei esse exemplo por ser mais fácil. Parece-me que ele é uma pessoa que se pergunta o que quer dizer "as pessoas sonham". Dizer que as pessoas sonham é uma banalidade. As pessoas sonham, sim, mas Minneli faz uma pergunta muito estranha que lhe é muito particular: o que quer dizer estar preso no sonho de alguém? Passa pela tragédia, pela comédia, pelo abominável etc.O que quer dizer estar preso no sonho de uma menina? Podem aparecer coisas terríveis por ser prisioneiro do sonho de alguém. Pode ser um horror. Às vezes, Minnelli nos traz um sonho: o que é estar preso no pesadelo da guerra? E o resultado foi admirável: "Os Cavaleiros do Apocalipse". E ele não vê a guerra como guerra, do contrário, não seria Minnelli e, sim, como um grande pesadelo. O que quer dizer estar preso num pesadelo? Estar preso no sonho de uma menina resulta nos famosos musicais, em Fred Astaire ou Gene Kelly, não sei ao certo, escapam das tigresas e panteras negras. Isso é estar no sonho de alguém. É uma coisa gigantesca. Eu diria que isso é uma idéia. No entanto, não é um conceito. Se Minnelli trabalhasse com conceitos, ele faria filosofia e não cinema. Eu diria que é preciso distinguir três dimensões; três coisas tão poderosas que se misturam o tempo todo. E este é o meu trabalho futuro. É isso que eu gostaria de fazer e tentar entender melhor isto. Há os conceitos que são a invenção da filosofia e há o que podemos chamar de "perceptos". Os "perceptos" fazem parte do mundo da arte. O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria perceptos. Por que usar essa palavra estranha em vez de percepção. Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um homem de letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que as sentem. O percepto é isso. É um conjunto de sensações e percepções que vai além daquele que a sente. Vou dar alguns exemplos. Há páginas de Tolstoi que descrevem o que um pintor mal saberia descrever. Ou páginas de Tchekov que, de outra maneira, descrevem o calor da estepe. Há um grande complexo de sensações, pois há sensasções visuais, auditivas e quase gustativas. Alguma coisa entra na boca. Eles tentam dar a esse complexo de sensações uma independência radical em relação àquele que as sentiu.Tolstoi também descreve atmosferas. As grandes páginas de Faulkner! Os grandes romancistas conseguem chegar a isso. Há um grande romancista americano que quase disse isso. Ele não é muito conhecido na França e gosto muito dele. Thomas Wolfe. Ele descreve o seguinte: "alguém sai de manhã, sente o ar fresco, o cheiro de alguma coisa, de pão torrado etc., um passarinho passa voando..." Há um complexo de sensações. O que acontece quando morre aquele que sentiu tudo isso? Ou quando ele faz outra coisa, o que acontece? Isso me parece a questão da arte. A arte dá uma resposta pra isso: dar uma duração ou uma eternidade a este complexo de sensações que não mais é visto como sentido por alguém ou que será sentido por um personagem de romance, ou seja, um personagem fictício. É isso que vai gerar a ficção. E o que faz um pintor? Ele faz só isso também. Ele dá consistência aos perceptos.