terça-feira, 16 de novembro de 2010

Cinicamente contemporâneo...


Profissão? Ladrão
(baseado em fatos reais)

Numa delegacia. Repórter bem humorado em entrevista com um acusado de furto.



REPÓTER. Boa noite, telespectadores! O entrevistado de hoje é um camarada que tentou se adiantar em R$14,00 e acabou se lascando. Foi o João Durval. (apontando para o acusado) Ô, João Durval, você é muito doido, hein? Não sou eu que sou muito doido não.

ACUSADO. (sorrindo) Por causa de R$14,00...

REPÓRTER. Mas, você já teve várias passagens na cadeia, não teve?

ACUSADO. Tive, mas não dá nada não.

REPÓRTER. Mas e os quatro mandados de prisão? (em tom jocoso) O juiz quer você sentado lá na frente dele explicando...

ACUSADO. Daqui a um mês, eu vou lá conversar com ele, não é?

REPÓRTER. Tem medo não?

ACUSADO. Dá nada não. (pausa) Eu sou ladrão! Eu não gosto de trabalhar não. Eu sou ladrão, então eu não trabalho mais não, o seguinte é esse.

REPÓRTER. Então, você gosta de roubar? (irônico) É sua profissão mesmo?

ACUSADO. (sorrindo) É minha profissão! (pausa) Eu tenho 31 anos.

REPÓRTER. Você parece que tem 51! Tá um caco!

ACUSADO. (sorrindo) Eu to magro demais, né?

REPÓRTER. Mas o que é que você vai esperar da justiça aí?

ACUSADO. Vou esperar que a justiça seja feita, né?

REPÓRTER. E se te liberarem e você fugir, você volta a roubar de novo?

ACUSADO. Mas, é claro. Eu não vou trabalhar. Eu já to com 30 anos, não gosto de trabalhar, não trabalho mais não. Vou roubar de novo, né? (pausa, sorrindo) Se eu não fizer isso, ninguém tem trabalho. Vocês ficam todos desempregados se eu não roubar.

REPÓRTER. Ah, com essa ideologia, então, com essa mentalidade, quer dizer que você gera emprego pra polícia, pro repórter...

ACUSADO. (sorrindo) Pro repórter, pro escrivão, pra delegada, pra juíza e pro promotor, né? Tudo através de mim que sou ladrão...

REPÓRTER. Então, você está contribuindo aí!

ACUSADO. Com certeza! Estou contribuindo para o bem de todos!

REPÓRTER. (sorrindo) Isso é o que você pensa, né? E aquele povo lá que você furta? Esses, você está prejudicando...

ACUSADO. Aqueles lá são mais pecadores do que eu, porque Deus permitiu que eu roubasse eles. Eles são pecadores...

REPÓRTER. Então, você acha que Deus deu uma liberação pra você furtar os outros?

ACUSADO. Sim! Deus permite. Ele sabe de minha necessidade!

REPÓRTER. (sorrindo) Você não acha que é o capeta que tá tentando acabar contigo não?

ACUSADO. (sorrindo) Também, também!

REPÓRTER. Você também se relaciona com o capeta?

ACUSADO. Não, o meu relacionamento é com o senhor Jesus!

REPÓRTER. E você acha que Jesus aprova essas presepadas suas?

ACUSADO. Ele não aprova, mas ele passa o pano, né?

REPÓRTER. (sorrindo) Passa o pano nada! No final, ele tá lá esperando pra te julgar, rapaz.

Silêncio.

REPÓRTER. Você está consciente disso? Que, morrendo, você vai parar no colo do capeta?

Pausa.

ACUSADO. O capeta é mulher ou é homem? Se for capeta mulher, eu vou no colo dela!

VOZ DE FORA. CORTA!


FIM

sábado, 6 de novembro de 2010

*Exercícios dramáticos

A Fada
do
Botequim
Escrita por Bárbara Pessoa


Personagens:
ANNA: jovem de 25 anos; séria, porém descontraída; veste-se à vontade, mas possui modos recatados.
JUCA: jovem de 33 anos que demonstra muita firmeza no que diz; está sempre à vontade e, em alguns momentos, demonstra fragilidade.

A peça possui um único ato e este se passa na sala de uma casa modesta. Percebe-se que, nela, vivem jovens, provavelmente, estudantes. As personagens, Anna e Juca, vestem-se muito à vontade (bermudas, blusões, shorts, chinelos etc.), bem como se comunicam da mesma maneira: usando expressões informais.


ATO ÚNICO

Cena I
Sala de uma casa com poucos móveis. Sobre uma mesa pequena e redonda, existem muitas folhas de papel espalhadas. Há dois colchões de solteiro encostados à parede. Ao fundo, há duas estantes com muitos livros; no chão, pelos cantos, há livros arrumados em pilhas; sobre a televisão, há livros também; existem livros espalhados por muitos pontos da sala. Anna, acomodando a cabeça em uma almofada e os pés em uma pilha de livros, está deitada no chão e lê um calhamaço. Após um tempo, Juca entra e tira a roupa, colocando-a sobre uma cadeira. Juca fica apenas de cueca e acende um cigarro.

JUCA. (apontando, um a um, os livros que fazem parte da pilha sobre a qual Anna acomoda os pés) Dostoievski, Kafka, Ibsen, Hesse, Sartre, Brecht, Joyce, Spinoza, Oswald.

Anna permanece lendo em silêncio.
JUCA. (irônico) Isso que é subjugar a literatura e a filosofia!

Anna apenas retira os pés de cima da pilha de livros e Juca, num sorriso de canto de boca, liga o som. Toca “Like a Rolling Stone” (Bob Dylan, 1965) e Juca dança, enquanto Anna lê. Às vezes, Anna observa Juca dançando e demonstra, em seu semblante, incômodo, mas logo volta a executar sua tarefa. Quando a música chega ao refrão, Juca canta muito euforicamente. Anna levanta-se, encosta a pilha de livros, sobre a qual acomodava seus pés, à parede e senta-se à mesa.

JUCA. (observando a atitude de Anna e sorrindo levemente) Ih, já sei!

Anna permanece em silêncio enquanto arruma a bagunça que está sobre a mesa.

JUCA. (desligando o som) Pronto! Pode voltar a estudar.
ANNA. (trazendo o livro de antes para perto de si, seca) Obrigada.
JUCA. Esqueci que a senhora (enfatizando) juíza só consegue estudar no silêncio.
ANNA. (mantendo os olhos sobre o livro) Exatamente!
JUCA. (sorrindo) Não é bom ficar fixada, não, viu! Você tem que relaxar mais!
ANNA. (seca) E você menos.
JUCA. (sorrindo, irônico) Será, Anna? Fale-me mais sobre as (enfatizando) minhas necessidades!

Anna permanece em silêncio.

JUCA. Eu tô falando porque eu já passei muito tempo estudando. Você sabe disso!
ANNA. (que continua a olhar para o livro) Agora, enjoou de vez, né?
JUCA. (sorrindo) Continue na fixação!
ANNA. (voltando o olhar para Juca) Não é fixação!
JUCA. Posso, então, ouvir uma musiquinha?
ANNA. O dia que você resolver tirar aquele monte de coisas do único quarto da casa, eu poderei estudar e você poderá ouvir música: tudo ao mesmo tempo! Ó, que ótimo!
JUCA. (cínico) Monte de coisas!
ANNA. (cortando) Juca, depois! Eu tô estudando.
JUCA. Eu também tô estudando agora. Tô pensando em colocar essa música em meu filme!
ANNA. Que filme?
JUCA. Tô com um roteiro aí!
ANNA. Cadê?

Juca aponta para a cabeça e lança uma piscadela. Anna volta a ler.

JUCA. (após cantar um pouco de “Like a Rolling Stone”, refletindo) Essa música seria uma boa trilha...
ANNA. (mantendo os olhos sobre o livro; irônica) Muito original.
JUCA. (sorrindo) Se eu não estivesse tão bem, Anna, eu até poderia me irritar com seu jeitinho.
ANNA. (cortando) Rapidinho, já tô terminando! Só falta um parágrafo.

Juca senta-se numa cadeira. Pega um jornal que está sobre a mesa e começa a folhear.

ANNA. (após um tempo, voltando-se para Juca) Pronto.
JUCA. (após um tempo; lendo) “Roseira fala mal da música baiana, gerando mal estar entre os artistas”.
ANNA. Ele falou o que?
JUCA. Ó, vou ler. (lendo) “Em entrevista a uma revista, Roseira relata que o Axé Music não é gênero”. (dirigindo-se diretamente a Anna) Ó o que ele disse: (lendo) Na minha coleção de vinil, tem todos os gêneros musicais. Axé? Isso não é gênero, é problema! Tenho várias coisas da Bahia, mas não axé. (passando a vista no jornal) E fala outras coisas também... Que não gosta de samba-enredo... (após um tempo) Ele tem razão.
ANNA. Esse cara é muito arrogante, sinceramente!
JUCA. (cortando) Ele tá certo: todo mundo que faz um batuque na mesa, hoje em dia, é artista!
ANNA. Que nada! Esse Roseira se acha!
JUCA. Sim, tudo bem, mas isso é o mínimo. O que ele tá falando é que é pertinente, minha filha. A gente se acostuma com qualquer coisa e diz que é arte, aí depois nem sabe reconhecer uma obra artística de verdade!
ANNA. Roseira nunca criou nada, Juca! Todo mundo sabe disso! Ele nunca criou absolutamente nada no Rock. Não é o gênero dele? Então. Aí, fica falando dos outros, me poupe!
JUCA. Minha querida, ele não pode ter uma visão crítica? Nada a ver! O cara é crítico.

Anna demonstra incredulidade.

JUCA. Vou te falar, Anna! A galera, até da faculdade mesmo, fica me cobrando, querendo ver meus textos, enchendo o saco! Mas eu prefiro ficar na minha por enquanto. Melhor do que ficar por aí mostrando qualquer besteira.
ANNA. (sorrindo) Realmente! O povo vive dizendo que você se acha (enfatizando) o escritor só por causa daquele concurso no primeiro semestre! Mas que você não escreveu mais nada depois.
JUCA. Você acha que eu não sei? Eu sei! Só que eu não tô nem aí pra isso. Porque é sério: eu prefiro ficar quieto, na minha, do que ficar divulgando qualquer poeminha que eu escrevo. (após um tempo) Eu sei do meu potencial, Anna! Vá ver os textos premiados depois do meu e me diga se tem algum melhor!
ANNA. Mas o concurso nem existiu mais!
JUCA. E você acha que acabou por quê?
ANNA. Porque...
JUCA. (interrompendo) Porque não tinha mais ninguém, né! Aquela galera fala muito, é só garganta!
ANNA. Como não tinha mais ninguém? (após um tempo) Fazer um concurso de literatura numa faculdade de letras e não ter ninguém pra concorrer é estranho, né?
JUCA. (encerrando) Pois, é!
ANNA. Eu pensei que era por causa da espaço que a faculdade...
JUCA. (interrompendo) Ah, que nada! O que eu sei mesmo é que fica um monte de demente mostrando coisas medíocres e se dizendo artista! Enquanto (enfatizando) eu, que tenho bom senso, tenho que ficar dando satisfação. (silêncio; após um tempo) A galera acha que eu sou besta. Eu só não quero ficar me queimando. Eu vou me igualar a esses idiotas, é? Que nada! Também quando eu largar a bomba, aí eu quero ver! É capaz desses artistazinhos nem serem capazes de contemplar minha arte.

Anna olha para Juca com uma admiração irônica.

JUCA. Roseira tá certo: tem que falar mesmo!

Juca volta a ler o jornal e Anna termina de organizar os papéis que estão sobre a mesa.

JUCA. (após um tempo) Ó, Anna! Concurso de dramaturgia!
ANNA. (virando-se para Juca) É o que?
JUCA. Tem aqui no jornal que vai ter um concurso pra premiar uma peça inédita.
ANNA. Pra ganhar o que?
JUCA. Não vi ainda. Pera aí. (procurando no jornal, distraído) O jornal que tá dando...

Anna mantém o olhar sobre Juca e não demonstra empolgação com a notícia.

JUCA. (excitado) 10 mil reais! Dá pra viver durante um ano!
ANNA. E você vai mandar que peça?
JUCA. Não sei ainda.
ANNA. Mas qual provavelmente? Eu quero ler!

Juca continua a ler jornal. Silêncio.

ANNA. Você nunca me deixa ler suas peças.
JUCA. Eu te mostro.
ANNA. Eu posso até te ajudar a escolher!
JUCA. A escolher o que?
ANNA. A peça, Juca!
JUCA. Mas eu só vou escrever uma, né!
ANNA. (espantada) Você ainda vai escrever?

Juca afirma com a cabeça e continua a ler.

ANNA. Você não tem uma peça escrita?
JUCA. Completa não. Mas, tenho várias idéias.
ANNA. (irônica) Mas eu pensei que você fosse escritor, dramaturgo, sei lá!
JUCA. Eu sou!
ANNA. E não tem (enfatizando) um texto escrito?
JUCA. Porra! Você parece uma fiscal!
ANNA. Você vive com papel e caneta na mão, eu pensei que você escrevesse!
JUCA. E escrevo!
ANNA. E como não tem um texto?
JUCA. Tem faltado inspiração.
ANNA. Ah.
JUCA. É sério. Não tem saído nada nesses tempos! (após um curto tempo) Mas eu tenho algumas idéias!
ANNA. E por que não coloca no papel?
JUCA. Por que não tá saindo. Você pensa que é fácil, é?
ANNA. (num sorriso irônico) Não. Por isso que não sou escritora.
JUCA. (após um tempo) Enfim. Gostei desse concurso. Eu tenho exatamente trinta dias pra escrever. (raciocinando) Se eu escrever uma peça com cinqüenta páginas, a leitura vai durar, em média, cinqüenta minutos. Acho que tá bom.

Anna observa Juca sem levá-lo a sério.

JUCA. Eles não devem querer uma peça nem muito pequena nem muito grande, né? Meia hora é pouco e duas horas também é demais. (após refletir um pouco mais) Eu tenho trinta dias, aí eu me dedico, nos cinco primeiros, à inspiração, a pensar sobre o que escrever e depois...
ANNA. (interrompendo) Mas você não já tem a idéia?
JUCA. (levemente irritado) Tenho algumas.
ANNA. (cínica) Então, você já sabe sobre o que escrever, certo?
JUCA. (irritado) Não, Anna. Minhas idéias não servem pra agora!
ANNA. (pasmada) Como assim?
JUCA. Não servem! Já têm outro destino.
ANNA. E qual outro destino podem ter senão virarem algo escrito, concreto, sair do mundo da imaginação, sei lá?
JUCA. Todas irão se concretizar, claro. Mas no momento certo.
ANNA. (irônica) Que místico!
JUCA. (sem prestar atenção em Anna, pensativo) Tem uma peça, por exemplo, que eu vou escrever sobre a arte. Uma homenagem à arte, digamos. Eu não posso escrever em trinta dias, porque eu vou precisar até de uma pesquisa, de uma dedicação maior.
ANNA. Ah, tá, entendi. Agora, então, você vai escrever uma peça mais comercial, como dizem! Ou seja, uma peça pior!
JUCA. Você é irritante, minha filha. A peça não tem como ser melhor ou pior. A peça vai ser (enfatizando) minha. Tudo que (enfatizando) eu escrevo é meu, então tem a mesma qualidade.
ANNA. Ah.
JUCA. Tem que pensar nisso, Anna! Você acha que, quando eu ganhei o concurso de poesias lá da faculdade, eu não pensei não, foi?
ANNA. Em que mesmo?
JUCA. Na ocasião, no momento certo.

Anna apenas sorri.

JUCA. Concluindo meu pensamento: (calculando) em cinco dias, eu tenho uma boa idéia para (enfatizando) esse concurso e, em vinte e cinco, eu escrevo duas folhas por dia e levo pro jornal; dá tempo! E duas folhas, por dia, não é muito.
ANNA. (seca) Tá bom.

Anna volta a ler o livro grosso de antes e Juca sai de cena. Quando este retorna, traz consigo folhas de papel, um lápis e uma borracha. Juca também senta-se à mesa. Há uma mudança na intensidade da luz. A sensação é de dias que passam. Ao fundo, ouve-se “Like a Rolling Stone” numa versão instrumental (The String Quartet Tribute to Bob Dylan). A música tem duração de três minutos e doze segundos. Durante este tempo acontecem as ações descritas a seguir. Juca começa a escrever. Após um tempo, levanta-se e acende um cigarro; dá três tragadas e apaga-o. Senta-se novamente à mesa, olha fixamente para o papel, mas nada escreve. Após mais um tempo, Juca levanta-se e usa o telefone; ri muito enquanto conversa – vê-se isso, mas não se ouve sua voz. Ao desligar o telefone, retorna à mesa e, segurando o lápis, demonstra querer escrever, apesar de não fazê-lo. Olha, mais uma vez, fixamente para o papel durante um tempo. Anna, que, discretamente, observara toda a movimentação de Juca, levanta-se, sai de cena e retorna com um copo d’água à mão; dá um gole e volta a estudar. Juca levanta-se, pega um walkman e retorna à mesa com fones no ouvido. No início tenta escrever, mas logo se distrai. Juca fica pensativo. Em um dado momento, Anna olha para Juca e percebe-o com o olhar distante, apoiando a cabeça na mão. Ela olha para o papel e olha para Juca novamente.

ANNA. (coincidindo com o final da música) Juca?

Juca não ouve devido aos fones no ouvido.

ANNA. (retirando cuidadosamente os fones do ouvido de Juca) Juca?
JUCA. (voltando o olhar para Anna) Sim.
ANNA. (irônica) Já acabou?

Juca olha para Anna e demonstra ter percebido a ironia.

ANNA. (sorrindo levemente) E aí?
JUCA. Sei lá.
ANNA. (brincando com a situação) Já se passaram cinco dias. Seu prazo pra se inspirar tá acabando!
JUCA. (sem achar graça) Ó, Anna.
ANNA. É sério! A folha vai ficar em branco, é?

Juca não dá atenção.

ANNA. (forçando um diálogo) E aí?
JUCA. (com uma falsa tranqüilidade) Vai rolar.
ANNA. Então, tá.
JUCA. Eu tava com outros planos pra esses dias. Aí, esse concurso vem e cai de pára-quedas. Eu não posso deixar passar, claro, mas também é difícil escrever sob encomenda.

Anna continua a estudar e Juca a olhar o papel com o lápis à mão. Após algum tempo, Juca levanta-se e arranca dois quadros pequenos que estão presos à parede e colocam-nos de frente para si sobre a mesa. Juca observa os dois objetos, um de cada vez, e volta a olhar para o papel. Escreve alguma coisa e logo apaga com a borracha. Olha durante mais um tempo para os quadros e volta a escrever. Escreve bastante. Anna o olha e se impressiona com a empolgação com que escreve.  Juca, após um tempo, rasga o papel.

ANNA. Juca!
JUCA. O que?

Anna volta a estudar.

JUCA. Eu precisava de mais uma imagem. Essas duas são boas, mas eu prefiro ter uma pro início, outra pro meio e outra pro fim!
ANNA. Você não pode inventar um fim?
JUCA. Não. O fim já é essa. (aponta para um dos quadros)

Anna, intolerante, volta a estudar.

JUCA. (olhando em volta) Aqui, não tem nada de muito interessante.

Anna permanece estudando e ignora Juca.

JUCA. A verdade é que isso de imagem só funciona na sala de aula ou em prova. Parece que o professor, os colegas, o tempo ajudam o negócio a funcionar.
ANNA. (voltando-se para Juca) E aqui ajudaria o que?
JUCA. (como se dissesse o principal ponto da questão) O insight! Olhar pra alguma coisa e ter uma idéia. Ou nem olhar pra nada. Estar diante de alguma coisa que parece insignificante e escrever. Tudo que escrevi, até hoje, foi assim.
ANNA. O que você já escreveu até hoje?
JUCA. Algumas coisas. E também tenho várias idéias guardadas. (após uma pausa) É que, esses dias, as idéias não tão vindo. (silêncio) Já sei!

Juca levanta-se e vai em direção à janela que fica entre as duas estantes ao fundo. Apóia-se nela e olha para o lado de fora. Anna o acompanha com o olhar por todo o tempo.

JUCA. (após um tempo, excitado, retorna à cadeira, escreve e fala rápido ao mesmo tempo) Um homem que anda apressado para atravessar a pista; duas mulheres que conversam enquanto esperam os carros passarem para atravessarem também; o homem atravessa correndo; as mulheres, distraídas, vão na mesma direção, mas por não correrem são atropelada!. Sim, (olhando pra Anna) né?
ANNA. Eu não sei, Juca.
JUCA. Mas, o argumento é interessante?
ANNA. Argumento?
JUCA. A sinopse!
ANNA. Pode ser.
JUCA. Porque aí eu colocaria outras coisas, claro. Inventaria novos fatos. Mas a base seria essa!
ANNA. É... Por que não?
JUCA. Ficaria bem policial! Acho que é bom!
ANNA. Depende do modo como escreve.
JUCA. Esse é o problema.
ANNA. Isso é que faz um escritor!
JUCA. Já vi vários escritores famosos dizendo que o processo de criação é árduo.
ANNA. (sorrindo) Árduo é diferente de infértil!
JUCA. Você é romântica, Anna! Acha que o artista senta e cria! E é só!
ANNA. Você que disse isso nestante!
JUCA. Eu falei de insight, é diferente!

Anna sorri, achando hilário. Juca concentra-se. Passa um bom tempo escrevendo algo até que amassa o papel e demonstra irritação.

JUCA. Não sai, cara! (apontando para a própria cabeça) A idéia tá aqui!
ANNA. Você desiste muito rápido, ave Maria!

Juca permanece em silêncio.
ANNA. Ó, Juca, eu não sou artista, não...

Juca a fita e espera que fale algo.

ANNA. (organizando as idéias) Tipo. Assim: você disse que se daria cinco dias para ter a idéia e que depois ia começar a escrever. Tudo bem que você ficou um tempo aí tentando, mas você se distrai o tempo todo: é cigarro, é café, é telefone, é televisão... Sei lá. Acho que, ficar imerso na coisa em si, ajuda, porque te coloca voltado pro seu objetivo, entendeu? Quando você passa horas fazendo, tentando, pensando sobre uma coisa, o tempo todo você tá naquilo e aí é mais fácil ter as idéias, construir alguma coisa, experimentar. Tem que experimentar!
JUCA. (sem dar importância) Sei, Anna.
ANNA. Fica difícil te dar algum crédito.
JUCA. Como é?
ANNA. Sei lá! Parece que você não se dedica o suficiente, é desleixado.
JUCA. Não adianta nada forçar o negócio. Já vi vários artistas famosos dizendo isso. Tem que se concentrar na hora que dá na telha! Quando dá vontade de fazer outra coisa, tem de fazer outra coisa. É assim, Anna. O tempo que meu espírito tava suscetível à criação, eu me concentrei, mas ainda não rolou, é normal.
ANNA. (sorrindo) Você fala muito bonito.
JUCA. E você é muito cínica. (após um tempo, justificando) Eu sempre me destaquei na faculdade. Tinha lido, às vezes, mais do que os próprios professores. Todo o mundo sabe da minha relação com a literatura.

Anna gargalha baixinho.

JUCA. Tá, Anna. Não tenho culpa se você nunca leu nada que prestasse.

Juca levanta-se e liga o som; toca a música “Eles” (Caetano Veloso, 1968).
ANNA. Tá vendo! Lá vai você ouvir música! Senta aí, Juca!
JUCA. Não, minha filha. Na faculdade, às vezes, a professora usava músicas pra estimular a criação. Pode funcionar!
ANNA. Você não disse que a faculdade não tinha disciplina de dramaturgia? E que você aprendeu sozinho e que...
JUCA. (interrompendo) E não tinha! Mas a técnica que serve pra uma coisa serve pra outra.
ANNA. Hum, sei! Aquela teoria: quem escreve escreve! Que música é essa?
JUCA. Não sei.

Ambos prestam atenção na música.

JUCA. (repetindo o que ouve e sorrindo) “Do bem e do mal!” (olhando para Anna, concluindo) Nietzsche!
ANNA. (repetindo, impressionada) “Alegres ou tristes são todos felizes durante o natal.” Adorei!

Anna anota o que disse em seu caderno.

JUCA. (pensativo) Não sabia que Caetano era Nietzschiano! (observando Anna a anotar) Você gosta de anotar, né? Anote aí então! Tem tudo a ver com essa música, com Caetano, com o momento...
ANNA. (interrompendo) Sim, diga.
JUCA. (citando) Tudo que se faz por amor sempre está além do bem e do mal!
ANNA. (ironizando) Ohhh! Essa é novidade!
JUCA. (levemente irritado) É novidade mesmo. Você sabe que é Nietzsche, mas não entende o real significado!
ANNA. (sorrindo) Não?
JUCA. Ai, ai. (diminuindo o volume da música e referindo-se a esta) Essa não dá! Não fala de nada!
ANNA. Ah, eu gostei!
JUCA. Sim, mas eu digo pra criar.
ANNA. Não sei, mas acho que, se (enfatizando) eu fosse artista, essa música me inspiraria.
JUCA. A música é boa! Mas, nesse momento, eu preciso de alguma coisa mais clara, né?
ANNA. (sorrindo) “Eduardo e Mônica”!
JUCA. (após pensar um pouco) Não sei.
ANNA. (segurando o riso) Tô brincando!

Juca volta a aumentar o volume da música e troca de estação. Toca “Bandolins” (Oswaldo Montenegro, 1979) que, no momento exato, vai repetir pela última vez a sua letra. Juca presta atenção, reconhecendo.

JUCA. (assim que reconhece a música) Porra! Essa música é linda demais! (aumentando o volume e cantando com muita emoção) “Como fosse um par que, nessa valsa triste, se desenvolvesse ao som dos bandolins. / (fechando os olhos, mais emocionado) E como não? / E por que não dizer que o mundo respirava mais se ela apertava assim / seu colo? E, como se não fosse um tempo em que já fosse impróprio se dançar assim, / ela teimou e enfrentou o mundo, / se rodopiando ao som dos bandolins! / (continuando com euforia) Como fosse um lar, seu corpo, a valsa triste iluminava e a noite caminhava assim. / E, como um par, o vento e a madrugada iluminavam a fada do meu botequim / valsando como valsa uma criança que entra na roda. A noite tá no fim / e ela valsando só na madrugada, se julgando amada ao som dos bandolins!” (continua de olhos fechados até o final da música, sempre com muita emoção; quando a canção termina, bate palmas e diminui o volume do som) Porra! (dirigindo-se a Anna) Que música bonita é essa? É uma das músicas mais lindas que eu conheço! É sério! (repetindo a letra da música, explicando) Se julgando, (repete enfatizando) julgando amada ao som dos bandolins! Puta merda! Essa música é demais! (voltando-se novamente para Anna) E pense... Aliás, você conhece essa letra?

Anna nega com a cabeça.

JUCA. (eufórico) Então! Ele diz que o mundo respirava (enfatizando) mais por causa da tal fada do botequim. Fada do botequim! Ó, que expressão linda! Diz que a mulher enfrentou o mundo, (repete enfatizando) enfrentou o mundo se rodopiando ao som dos bandolins! Diga aí, Anna! E olhe essa parte (fala com muita euforia): e, como um par, (repete enfatizando) um par, o vento e madrugada, (repete enfatizando) o vento e a madrugada iluminavam a fada do meu botequim! Toda vez que eu escuto essa música, eu imagino uma mulher linda, dançando, de vestido, embriagada talvez! Sei lá! Provavelmente, embriagada! Sendo desejada e desejando também, mas na dela, sabe? Solitária! Na verdade, essa música me mostra claramente um jogo! Essa mulher linda e várias pessoas em volta admirando! Ela joga com essas pessoas! Joga como o ator deve jogar com a platéia, por exemplo. Entende? Ela joga e é livre. (após um tempo) Tenho certeza que ela é uma mulher livre! Mesmo que, como diz a música, fosse (enfatizando) impróprio dançar como ela dançava e ela tenha enfrentado o mundo pra isso. Mesmo assim, aliás, por isso mesmo tem liberdade nessa mulher e nesse lugar, nessa dança. Tem liberdade! Uma mulher dessas sim poderia me inspirar! Eu sei disso! Só pelo que eu imagino... É tão real o que eu vejo!
ANNA. Escreve sobre ela!
JUCA. (empolgadíssimo) Sim, por que não? Imagine! Que situação viveria uma mulher dessas? Uma mulher que dança divina e tristemente, que faz o mundo respirar mais com sua dança, que toca o próprio corpo quando dança, que enfrenta o mundo, as pessoas, o moralismo... É uma mulher livre, claro! Uma mulher que dança sozinha até o final da noite, chamando a atenção de quem tá por perto e se (enfatizando) julgando amada! Por que ela se (enfatizando) julga amada, como ele diz? Por que ela se julga amada nesses momentos, ao som dos bandolins? Sabe por que, Anna? Porque nesses momentos, ela sente a admiração das pessoas, ela sente a liberdade! Então, ela (enfatizando) se julga amada, mas não é de fato. E por que não é? Por causa do moralismo, oras! Que homem amaria uma mulher dessas com a mesma intensidade, com a mesma verdade com que a admira quando a vê dançar? São todos moralistas! E ela sabe que esse é o único momento em que pode ser amada! E ela é triste porque é sozinha. É paradoxal: livre e triste! Mas é porque ela é jovem, não muito, mas é jovem, e os jovens não sabem lidar com a solidão, não sabem amá-la e...
ANNA. (excitada, interrompendo) Escreve, Juca!
JUCA. (quase irritado) Calma, Anna! Não vê que comecei a traçar o perfil da personagem? Isso é importante!!!
ANNA. (assustada) Desculpa!
JUCA. (ainda empolgado) Então!

Silêncio

ANNA. (eufórica) Você falava sobre a impossibilidade dessa mulher ser amada! Moralismo e tal...
JUCA. (após um tempo, irritado) Pronto! Esqueci! Que merda!
ANNA. A culpa é minha? Ai, ai!
JUCA. (mais irritado) Quando eu tô em meu ápice criativo, você me interrompe pra falar uma besteira! Meu Deus!
ANNA. Ah, Juca, sinceramente!
JUCA. (impaciente) Você não sabe, Anna! A criatividade dura um instante!
ANNA. Sim! Mas eu apenas sugeri que você anotasse! Se tivesse anotado, não teria esquecido!
JUCA. (extremamente irritado) Minha filha, eu não posso parar no meio do raciocínio pra anotar! Não funciona! A mão não é tão veloz quanto o pensamento! Eu só posso parar quando eu já tiver concluído a idéia, né. Aí, eu vou e organizo!
ANNA. Então, desculpe, Juca!
JUCA. Sim, eu desculpo. Mas agora eu vou ter de começar tudo de novo!
ANNA. Ai, Juca! Eu entendo o que você diz, mas também entendo que, em um momento, o que você tinha pensado vai voltar! É sempre assim! Se você começar a pensar sobre a mulher sensual, que dança na noite e que não é amada porque a sociedade é moralista, lá lá lá... Você vai chegar ao mesmo lugar!
JUCA. Primeiro, eu nunca disse que a mulher era (enfatizando) sensual! Você, usando esses termos, só me atrapalha mais. (silêncio) E sim! Talvez, haja algum registro aqui do insight que eu tava tendo, mas sabe lá quando ele vai aparecer!
ANNA. Insight não se pode (enfatizando) estar tendo. Ou tem ou não tem!

Juca começa e se vestir. Perdura o silêncio. Quando Juca está prestes a sair de cena, retorna repentinamente, com o ar decidido.

JUCA. Quer saber? Não vou escrever mais peça nenhuma, não.
ANNA. Por que?
JUCA. Que nada! Eu tô matando o meu espírito criativo, forçando-o a florescer só porque resolveram abrir um (desdenhando) concurso?
ANNA. Mas, é porque, normalmente, quem se inscreve nesses (enfatizando) concursos são pessoas que já tem o texto pronto. E só fazem revisar nos trinta dias, né.
JUCA. (irritado) Nada disso, Anna! É isso que fazem com os artistas! (orgulhoso) Com nós, artistas! Nos obrigam a viver tensos, precisando ganhar dinheiro, desesperados, transformando a criatividade, a intuição numa máquina capitalística! Tô fora! Eu quero que eles se danem com esse dinheirinho de merda! Não preciso dessa humilhação, não!

Anna não dá crédito ao que Juca diz e lança um olhar de desprezo.

JUCA. Que profissional precisa de tanta humilhação pra sobreviver? Tudo bem que tem pessoas que recebem salários ridículos e são muito mais exploradas, mas isso também é uma questão de escolha, né? E outra! Essas pessoas, ao menos, têm onde trabalhar, têm como abrir o jornal e procurar como fazer dinheiro. E eu? Quem quer me pagar pra escrever?
ANNA. (insegura) Mas, você não escreve, Juca.
JUCA. (desapontado) Han?
ANNA. (tentando ser delicada) Assim, a gente divide apartamento desde quando eu entrei na faculdade... Tem uns cinco anos, né?

Juca confirma com a cabeça

ANNA. Pois, é. Eu sempre te vejo escrevendo, dizendo que escreve, falando de suas idéias, mas nunca li um texto seu. Pensava que você tinha vergonha, sei lá. Mas hoje você vem e me diz que não tem (enfatizando) um texto escrito... Um? Aí, eu não entendo!
JUCA. Ah, claro! Mais uma moralistazinha pra me censurar! Aliás, você estuda pra que mesmo, hein? Pra ser juíza, né? Entendi.
ANNA. Então, tá, Juca.
JUCA. Você deve achar que eu tô contando uma piada, né? Que eu sou um vagabundo e nada mais. Pois, é! Hoje em dia, é fácil confundir artistas com vagabundos. Ainda mais aqui no Brasil! Se eu morasse na França pelo menos, aí você ia ver! Eu não estaria aqui como um mendigo!

Silêncio

JUCA. Eu já conheço esse discurso, Anna! Eu não quero brigar, não, mas sei como você pensa!
ANNA. Mas quem me disse que era escritor e que queria concorrer nesse tal (enfatizando) concurso foi você! Tá doido? Se você andasse dizendo por aí: (ironizando) “Vivo de ócio e amo isso!” Eu não ia dizer nada! (sorri)

Juca, enfurecido, permanece em silêncio.

ANNA. (sorrindo quase que involuntariamente) Agora, não me venha dizer que é escritor.
JUCA. (imediatamente à fala de Anna, mudando de assunto) Você acredita que o artista deve criar quando o Estado manda, né? É isso, já entendi. Acabou a conversa.
ANNA. Não! Eu penso que um artista cria com mais freqüência que outro profissional. Em cinco anos, você não criou mais do que eu, por exemplo. Porque, na verdade, nós dois não criamos nada! E eu não sou artista! (sorri)
JUCA. Claro que não é.

Após um tempo em silêncio, Juca sai pela porta sem nada dizer. Anna retira as coisas que estão sobre a mesa, colocando-as em um canto e insere um DVD no aparelho apropriado. Anna, após estender os colchões no chão e forrá-los, deita-se em um e começa a assistir ao filme “Farrapo Humano” (Billy Wilder, 1945). A imagem deve ser projetada para toda a platéia exatamente na cena em que o personagem Don está em seu apartamento e vê morcegos. Inicialmente, Don não se assusta tanto, até que aparecem vários morcegos rondando-o e um deles morde um outro que se encontra preso à parede, tirando-lhe sangue. Don, então, grita desesperado, chamando a atenção dos vizinhos que ajudam-no. Ao receber ajuda, Don descobre que tudo não passou de um pesadelo. A cena é forte e dura quatro minutos e trinta e oito segundos. Ao final da cena, Juca, que já está deitado no outro colchão dormindo, acorda de súbito, agoniado, e percebe-se que a imagem projetada se tratava de um pesadelo do próprio Juca. Juca levanta-se, pega uma folha de papel e um lápis, senta-se à mesa e acende um abajur que se encontra sobre esta. Juca começa a escrever. Escreve um pouco para depois passar um tempo olhando fixamente para o papel. Em pouco tempo, Juca cochila sentado e, ao quase cair, desperta, desliga a luz do abajur e dirige-se ao seu colchão. Escuridão.

Cena II
 A luz vai aumentando de intensidade aos poucos e revela Anna sentada à mesa estudando. Juca acorda e dirige-se rapidamente à mesa procurando pelo papel da noite anterior. Não encontra.

JUCA. Cadê um papel que tava aqui?
ANNA. (apontando para os vários papéis sobre a mesa) Um papel?
JUCA. Sim! Quando você sentou, tinha o que aqui?
ANNA. Não tinha nada, eu acho.
JUCA. (irritado) Você acha?
ANNA. Eu não vi, Juca.
JUCA. (procurando entre os papéis sobre a mesa) Porra, Anna!
ANNA. Deve tá aí, meu filho, calma.
JUCA. (enfatizando) Tem de estar.
ANNA. Ontem, de noite, eu arrumei tudo antes de dormir e não ficou nada na mesa!
JUCA. Sim, mas eu escrevi de madrugada.
ANNA. De madrugada?
JUCA. (dissimulado) Na verdade, quase a peça toda.

Anna olha para Juca com estranheza.

JUCA. É porque você não sabe. Eu tenho esse costume! (vacilando) Eu sou noturno!
ANNA. É, não sabia. (apontando para a mesa) Deve tá aí então.
JUCA. Deve não. (enfatizando) Tem de estar! Se não estiver, eu quero ver! Vai ser impossível escrever duas vezes a mesma coisa. (após um tempo, enfatizando) E tava muito bom!
ANNA. (irônica) Hum! E como foi isso? Do nada?
JUCA. Sim! Como tem de ser! (Juca começa a arrumar os papéis e a olhar um por um)
ANNA. (seca) Que bom. (após um curto tempo, desacreditando) Mas, você acordou e pronto?
JUCA. Eu tive um sonho que me inspirou!
ANNA. (seca) Ah, que ótimo.
JUCA. Só falta eu achar, né? (após terminar de procurar) Não tá aqui. Que merda!

Anna permanece silenciosa, estudando.

JUCA. (após um tempo) Vou ter que recomeçar!

Juca senta-se à mesa e, com um lápis, começa a escrever em uma folha de papel. Anna levanta-se e sai de cena.

ANNA. (de fora, lendo) “Um escritor atormentado por não conseguir escrever, certa noite, tem um pesadelo e vê morcegos perseguindo-o, grita muito e acorda. Ao acordar, percebe que foi um sonho e decide escrever sobre um escritor que vive atormentado por não conseguir escrever.” (voltando à sala e dirigindo-se a Juca) Foi essa sua grande idéia, Juca?
JUCA. (desconcertado) Mais ou menos. Tinham outros papéis também!
ANNA. Mas isso é, praticamente, a cena de um filme.
JUCA. Lá vem você com suas invenções.
ANNA. Por sinal, eu assisti a esse filme ontem.
JUCA. (irritado) E eu com isso, Anna?
ANNA. (com ar de acusação) Não sei!
JUCA. Eu não imitei ninguém, não, minha filha! (após um tempo) Acontece que muita coisa já foi feita, e aí fica difícil criar algo tão original, né? (após mais um tempo, justificando-se) Se você visse tudo que eu escrevi ontem, não estaria falando besteira!
ANNA. (saindo de cena) Ah, então o resto dos papéis devem ter voado pra cozinha também.
JUCA. (cortando) Depois, eu procuro.
ANNA. (retornando após um tempo) Tem mais nada na cozinha, não!
JUCA. (vacilando) Eu devo ter jogado fora.
ANNA. Eu, hein!
JUCA. Sou sonâmbulo.
ANNA. Ah, então vai ver que a sua sonambulice te fez ligar o DVD!
JUCA.  Boa imaginação!
ANNA. Aí, depois você sonhou com a cena do próprio filme!
JUCA. E o que mais?

Anna apenas sorri.

JUCA. Você acha que tá me irritando, né?
ANNA. Ó, Juca! (apontando para o papel) A idéia central tá aí! É só desenvolver (irônica) ao seu modo contemporâneo!
JUCA. Pois, é.

Anna e Juca concentram-se, cada um, em sua tarefa: Anna estuda e Juca escreve. Há novamente uma variação na intensidade da luz dando a mesma sensação de dias que passam. Ao fundo, novamente, “Like a Rolling Stone” instrumental já começando da metade. Isso dura pouco mais de um minuto. Quando as luzes finalmente acendem, mostram Juca e Anna ainda executando suas tarefas.

ANNA. (após algum tempo) Ai, cansei. Domingo, dia de folga!

Silêncio. Juca continua a escrever.

ANNA. É até amanhã pra inscrever a peça, né?

Juca responde afirmativamente com a cabeça.

ANNA. Será que vai dar tempo?
JUCA. (subitamente) Acabei de acabar.
ANNA. (surpresa) Sério?
JUCA. (orgulhoso) Sim.
ANNA. Hum! Posso ler?
JUCA. Claro.

Anna estende a mão para pegar o texto

JUCA. Só preciso revisar algumas besteiras.

Anna se frustra.

JUCA. Mas, faço rápido. Bora!
ANNA. Pra onde?
JUCA. Vou me dar folga também!

Juca levanta-se da cadeira, munido de seu texto, e vai em direção à boca de cena, sentando-se, ao centro, de costas para a platéia e de frente para Anna.

ANNA. (animada) E a gente vai fazer o que?

Juca não responde; está olhando fixamente para o texto que está sobre o chão.

ANNA. Juca?
JUCA. Desculpa! É porque é tão bom ver o negócio pronto. Dá vontade de ler tudo toda hora!
ANNA. Vamo ler juntos!
JUCA. (irritado) Não, Anna! Vai ser importante pra mim me distanciar um pouco. (percebendo a frustração de Anna) Sério! Quando eu revisar, você lê.
ANNA. Então, tá.

Juca continua a olhar para o texto que ainda está sobre o chão.

ANNA. Vou tomar um banho e depois você vai.

Juca, concentrado, não responde, enquanto Anna, num ar respeitador, retira-se. Juca permanece a olhar para a folha de papel sobre o chão.

ANNA. (após um tempo, de fora) Juca! Acho que trouxeram uma carta, pra você, aberta! (Anna, assustada, retorna à sala com um envelope aberto em mãos)
JUCA. (distraído, ainda olhando pro papel) Não. Fui eu que abri quando cheguei da rua de madrugada.
ANNA. Ah, que susto! Porque esse prédio aqui, você sabe, né?
JUCA. (voltando o olhar pra Anna e sorrindo sem graça, referindo-se ao envelope) Pode botar em cima da televisão.
ANNA. (saindo novamente) Sorry! Não quis atrapalhar!

Juca volta-se para o texto e ergue-o à altura do rosto. Começa a ler, em voz alta, o que está escrito. A platéia enxerga que têm coisas escritas na folha.

JUCA. Pai, por aqui está tudo ótimo. Antes de lhe falar sobre o cotidiano, quero contar-lhe uma novidade. Estou entre os três últimos selecionados num concurso literário promovido pelo governo do estado. O prêmio será muito bom, mas só conto se acontecer! Tenho chances reais de ganhar! Estou feliz, pois finalmente aconteceu algo honesto nessa cidade e, assim, pude me inscrever. O único problema é que o prêmio pode demorar a sair: questões políticas! De qualquer maneira, isso não é o mais importante e sim que, muito em breve, você terá uma obra minha publicada! Obrigada pelo dinheiro enviado através da última carta. Sei que o senhor está ao meu lado sempre, mas não me canso de agradecer. Infelizmente, o trabalho do artista não é reconhecido como deveria (quantos se suicidaram por isso?), mas estou lutando para que as coisas mudem, ao menos, no local onde vivo, já que não posso mudar o mundo. Se cada um fizesse a sua parte, certamente, teríamos um mundo melhor. Sou grato pelo senhor me compreender e ainda me ajudar: eu, um homem de mais de trinta anos. Tenho de repetir que envergonho-me um pouco por isso, mas tenho certeza que as coisas estão mudando para melhor. Em breve, escrevo-lhe mais calmamente, pois agora mesmo tenho de voltar ao trabalho. Já estou numa nova empreitada: debruçado sobre a produção de uma série de contos infantis. Saudades dos meus, Juca.

Juca amassa a folha, joga-a para trás, em direção à platéia, e começa a folhear as que tem em mãos, jogando-as, uma por vez, sem amassá-las, para trás também. Essas folhas, seguintes à primeira, possuem apenas desenhos. FIM.