sábado, 23 de janeiro de 2010

[ trecho ] "O Lobo da Estepe"

"Na planície vimos um ancião de aspecto respeitável, de longa barba, e rosto aflito, que conduzia um exército poderoso de uns dez mil homens todos vestidos de preto. Parecia estar confuso e desesperado, e Mozart disse:

- Veja, é Brahms. Aspira à redenção, mas custará muito a alcançá-la.

Soube que aqueles milhares de homens vestidos de preto eram seus cantores e executantes daquelas vozes e notas que, segundo o juízo divino, haviam sido desnecessárias e supérfluas em suas partituras.

- Orquestração demasiado pesada, vasto material desperdiçado - observou Mozart.

Em seguida vimos à frente de um grande exército, igualmente numeroso, Richard Wagner empurrado pela multidão, fatigado, arrastando-se com passos vacilantes.

- Em minha juventude - observei com tristeza - esses dois músicos eram todos como os mais extremos contrastes que se podia conceber.

Mozart sorriu.

- Sim, é sempre assim. Tais contrastes, vistos a pequena distância, sempre tendem a apresentar sua crescente similitude. A instrumentação excessiva não foi, na verdade, uma falha pessoal de Wagner ou de Brahms; era um defeito de sua época.

- Como? E tiveram de pagar tão duramente por isso? - exclamei em tom de protesto.

- Naturalmente. A lei segue seu curso. Depois de pagar a culpa de seu tempo, ver-se-á se a culpa pessoal merece alguma redenção.

- Mas nenhum dos dois tiveram culpa?

- Certamente que não. Não tiveram culpa, como tampouco Adão teve culpa de haver comido a maçã e nem por isso deixou de pagar pelo pecado.

- Mas isso é terrível.

- Sem dúvida, a vida é sempre terrível. Nada podemos fazer em contrário e, não obstante, somos responsáveis. Mal se nasce já se é culpado. O senhor deve ter recebido instrução religiosa muito particular para desconhecer tais dogmas.

Aquilo fora para mim desilusório. Vi-me a mim mesmo arrastando-me pelo deserto do além, como um peregrino morto de cansaço, carregado com os inúmeros livros inúteis que havia escrito, com todos os artigos e opúsculos que havia publicado, seguido de um exército de leitores que se viram obrigados a tragar tudo aquilo. Meu Deus! E além disso, ali estavam também Adão e a maçã e toda a restante culpa hereditária. Tinha de purgar tudo aquilo e só então poder-se-ia levantar a questão se, após tudo aquilo, havia algo pessoal, algo próprio que considerar, ou se todos os meus atos e suas consequências não seriam mais que espumas boiando no mar, ondulação sem sentido na torrente dos acontecimentos."

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