segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O QUE É TEATRO?





I





Um espaço, um homem que ocupa este espaço, outro homem que o observa. Entre ambos, a consciência de uma cumplicidade, que os instantes seguintes poderão até atenuar, fazer esquecer, talvez acentuar: o primeiro, sozinho ou acompanhado, mostra um personagem e um comportamento deste personagem numa determinada situação, através de palavras ou gestos, talvez através da imobilidade e do silêncio, enquanto que o segundo, sozinho ou acompanhado, sabe que tem diante de si uma reprodução, falsa ou fiel, improvisada ou previamente ensaiada, de acontecimentos que imitam ou reconstituem imagens da fantasia ou da realidade. O primeiro, ou os primeiros, são movidos por um impulso criativo que incorpora emoção e razão num ato de desenfreada ou controlada entrega, celebrando um ritual quase místico de epidérmica necessidade, ou exercendo a rigorosa tarefa de uma profissão complexa e densa. Enquanto o segundo, ou os segundos, assistem passiva ou ativamente, entorpecidos por uma magia que os envolve numa cerimônia que faz fugir da própria realidade para um mergulho num universo de encantamento ou mentira ou ilusão, ou, ao contrário, aprofundam o conhecimento lúcido e crítico da própria realidade que os cerca, engravidando-os de um prazer capaz de torná-los mais conscientes e mais vigorosos enquanto homens racionais, dotados da possibilidade de agir e dominar as forças da natureza e da sociedade, transformando as relações entre os homens na necessária urgência de construir democracia e liberdade.


Será isso o teatro? Será possível definir teatro? Será certo e verdadeiro tentar precisar seu significado se, desde a origem do homem, existe enquanto processo, em permanente transformação, obedecendo a sempre novas exigências e necessidades do homem que, através dos tempos, na produção social de sua existência, entra em determinadas relações de produção, necessárias e independentes de sua vontade, que correspondem a determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais da sociedade? O que pode valer para entender a cultura ocidental vale para a oriental? Enfim, existe um teatro ou, em função da vida econômico-política, teatro hoje é uma coisa, amanhã outra, ontem foi diferente? É necessário cuidado para não cair na facilidade de definições abstratas de discutíveis "essências" inexistentes, ou na armadilha de definições idealistas que aceitem um instante isolado, seja o hoje ou o ontem, como verdades imutáveis.


Diante do pensamento reacionário que acusava suas propostas concretas de construção de um teatro dialético, instrumento de conhecimento e prazer, instrução e diversão do homem que sabe que o destino do homem é o homem, Bertold Brecht, com tranquila lucidez, desenvolveu sua poética da arte materialista e dialética, liberta da estética tradicional e voltada para a transformação produtiva da sociedade, ironicamente afirmando que, para isso, se fosse necessário para evitar controvérsias inúteis, será preferível chamar teatro de teatro. E não perder tempo em questões menores.








II





Mas, mesmo sendo transformado em função do processo histórico, o teatro conserva, através dos tempos, uma série de elementos que o distinguem enquanto expressão artística. É verdade que muitos às vezes são esquecidos ou, circunstancialmente, relegados a segundo plano, para, em novas condições, voltarem a ser recuperados. O teatro tem uma história específica, capítulo essencial da história da produção cultural da humanidade. Nesta trajetória, o que mais tem sido modificado é o próprio significado da atividade teatral: sua função social. Constantemente redefinida, na teoria e na prática, esta função social tem provocado alterações sobstantivas na maneira de conceber e realizar teatro. Muitas vezes negando princípios e técnicas que pouco antes pareciam essenciais e indispensáveis. Frequentemente transformando o processo narrativo e mesmo os processos de interpretação e encenação. É irrecusável que, dentro de certos limites, formas artísticas acabam criando novas formas artísticas. Mas seria permanecer no campo enganador das aparências não levar em conta que, em nível mais profundo, não são idéias que criam idéias: o que se transforma na vida social e real dos homens é que determina modificações nas concepções filosóficas como nas representações artísticas. Assim, é fundamental não perder de vista a verdade dialética do movimento histórico: a saga do teatro, fascinante aventura do pensamento e da ação do homem, possui apenas aparência de autonomia.


O que não significa que o teatro não tenha sentido enquanto instrumento de transformação da sociedade. Isoladamente, é claro que é impotente para provocar modificações ou despertar resultados sócio-políticos marcantes. Mas o palco, ou seja qual for o espaço de representação, estabelece, em nível de razão e emoção, uma reflexão e um diálogo vivo e revelador com a platéia, ou seja qual for o espaço dos espectadores. Incapaz de agir diretamente no processo de transformação social, age diretamente sobre os homens, que são os verdadeiros agentes da construção da vida social. O encenador alemão Manfred Wekwerth explica com clareza a única efetiva eficácia que o teatro poderá desempenhar: "ajudar a se tornarem eficazes aquelas forças sociais que, por sua própria natureza histórica, estão em condições de provocar transformações na sociedade; e isso através de meios específicos do teatro: através do prazer".


Foi Brecht que, retomando a formulação da estética burguesa revolucionária, fundada por Diderot e Lessing, que definiram o teatro como divertimento e ensino, levou às últimas consequências a formulação do teatro a serviço da vida social, com a condição de cada vez mais aprofundar sua linguagem enquanto teatro. Assim, Brecht chegou a afirmar que "o prazer é a mais nobra função da atividade teatral".








III





Mas, afinal: um espaço, um ator, um espectador - bastava isso para existir o teatro? O historiador e crítico italiano Silvio D'Amico começa sua valiosa História do Teatro Dramático com uma frase intrigante: "Teatro é uma palavra de significado ambíguo".


Etimologicamente a origem é o verbo grego theastai (ver, contemplar, olhar). Inicialmente, designava o local onde aconteciam espetáculos. Mais tarde serve para qualquer tipo de espetáculo: danças selvagens, festas públicas, cerimônias populares, funerais solenes, desfiles militares etc. A idéia que a palavra hoje desperta em nós só aparece definida no século XVII. Afinal, o que distinguiria o teatro de outras manifestações semelhantes?


O princípio do teatro tem sido objeto de inúmeras especulações. Mas praticamente todos situam dois pontos irrecusáveis: desde cedo os homens sentem a necessidade do jogo, e no espírito lúdico aparece a incontida ânsia de "ser outro", disfarçar-se e representar-se a si mesmo ou aos próprios deuses ou assumir o papel dos animais que procura caçar para sua sobrevivência, às vezes inclusive fazendo uso de máscaras; e ainda, ao que tudo indica, o jogo teatral, a noção de representação, nasce essencialmente vinculada ao ritual mágico e religioso primitivo. Estes pontos indicam questões pertinentes e estimulantes.


Entre elas: representando deuses, os homens fazem as dinvidades descerem ao mundo material, corporificando-as e tornando-as visíveis e acessíveis a seus anseios e medos e necessidades e perplexidades; organizando rituais religiosos, os homens organizam festas, nas quais as sociedades primitivas se integram numa comemoração coletiva de extrema vitalidade, mesmo que o elemento da morte possa estar presente até de forma acentuada; simulando caçadas, os homens primitivos acreditavam ou no poder mágico de exercitar uma ação falsa antes de empreender a verdadeira, ou no poder prático de treinar astúcia e músculos para garantir o êxito no momento decisivo, neste caso atribuindo à representação um sentido, eminentemente prático que não exclui a presença da beleza; imitando os próprios homens, buscavam observarem-se a si mesmos "de fora", talvez utilizando o riso e o deboche como embrião de uma forma de a sociedade autocriticar-se através da representação de seus costumes cotidianos; na ânsia de sair de si para ser outro talvez fosse possível encontrar as primeiras manifestações de uma ânsia mais abstrata e talvez mais profunda da relação do homem consigo mesmo, não sendo totalmente absurdo partir daí para especulações sobre fascínio ou recusa, insatisfação ou procura, etc.


Mas o próprio Silvio D'Amico, ao citar o teatro como a "comunhão de um público com um espetáculo vivo", sente a insuficiência da definição. O que falta é a "consciência de uma cumplicidade" que mencionamos no início: trata-se de uma representação.


Na verdade, o teatro nasce no instante em que o homem primitivo coloca e tira sua máscara diante do espectador. Ou seja, quando existe consciência de que ocorre uma "simulação", quando a representação cênica de um deus é aceita como tal: a dinvidade presente é um homem disfarçado. Aqui começa o embrião da noção de ficção e também da noção de fazer arte. O teatro define seu terreno específico. E, naturalmente, enquanto para os idealistas sua essência pode ser até mesmo divina, para os materialistas seu significado é concreto. E pertence aos homens.








IV





De tudo isso, o que permanece no teatro hoje? O mais justo, aliás, será afirmar logo que hoje não existe um teatro, mas vários. As mais diferentes e mesmo antagônicas tendências coexistem pacífica ou não pacificamente. É frequente localizarmos num mesmo espetáculo, caminhos ou soluções que se contradizem. E, às vezes, deste conflito na articulação interna da narrativa nasce uma inesperada coerência. As mais radicais experiências frequentemente abalam os alicerces das poucas certezas.


Diferentes concepções do significado da arte buscam soluções distintas, mesmo quando entre elas existe um consenso ideológico. O individualismo exarcebou a necessidade de o artista trilhar propostas pessoais. Mas, mesmo artistas que não fazem do individualismo um princípio de existência, diante de diferentes condições de trabalho, participando de contraditórias realidades sociais que postulam formas distintas de comportamento e posicionamento crítico, revisam conceitos e preconceitos. Se a isso somarmos todos aqueles que fazem da investigação formal um fim em si mesma, ou que fazem do estilo pessoal uma seita egoísta e narcisista, fechada e intransferível, teremos uma imensa quantidade de tendências. Juntas, por mais contraditórias e antagônicas que possam ser, constituem o complexo e múltiplo produto cultural de nossa época.


Por outro lado, quando Marx afirma que a vida social determina a consciência, isso não exclui uma relativa margem de autonomia. Nem implica o aniquilamento da coexistência de manifestações desiguais: há um forte vínculo entre os produtos artísticos de uma época e os da épocas seguintes. E inclusive o fato de serem transformadas as condições de estrutura econômica de uma sociedade não produz, automaticamente, o desaparecimento dos produtos culturais de um instante histórico. Muitas vezes permanecem durante largo tempo. E às vezes até atingem seu máximo florescimento no momento de crise de uma base econômica ou nos estertores de uma estrutura sócio-econômica já superada pelo processo revolucionário.


Vivemos numa sociedade dividida em classes, onde as idéias dominantes são as idéias das classes dominantes. Mas o pensamento subalterno também produz sua cultura, dentro de contradições específicas: o processo criativo mantém o esforço do homem em sua batalha pela libertação ou pela cotidiana luta pela construção de uma nova sociedade. O que não exclui que seria totalmente falso imaginar que os estados capitalistas produzem um teatro diferente do que é produzido nos estados socialistas. Mas, se diversos aspectos coincidem, outros se diferenciam cada vez mais. O novo vasce do velho, mas durante muito tempo é possível que um processo cultural conserve em evidência, em precário e temporário equilíbrio, os termos antagônicos de uma contradição. Uma das características mais autênticas do teatro de hoje é que ele se busca a si mesmo. É evidente que alguns caminham com mais segurança que outros. Mas as experiências acabam se enriquecendo umas às outras. É preciso inclusive não esquecer que, como afirma o crítico francês Bernard Dort, hoje não mais existe um único público, aquele público burguês ao qual se referia a crítica do século XIX, mas sim vários públicos.





V



Afinal, o que permanece nos vários teatros de hoje? Muito pouco, em relação ao que vimos. Algumas tendências do teatro contemporâneo excluem a necessidade de um espaço próprio e definido para a realização da manifestação teatral. Mas, no sentido mais amplo da palavra, este espaço poderá ser qualquer espaço: uma esquina, uma loja, um restaurante, um trem, etc. Como afirma Augusto Boal, que formula a proposta radical de um "teatro invisível", no qual o espectador só tem conhecimento e consciência de ser espectador, o teatro poderá ser realizado até mesmo nos teatros. E até mesmo pelos atores...

Um homem observa o comportamento de outro homem - ou seja: um espectador e um ator, ainda serão a condição mínima? Em certo sentido talvez seja possível estudar o processo histórico da produção da cultura teatral através das diferentes formas ideológicas que assumiu, em função de diferentes necessidades sócio-políticas, este desafiador relacionamento. Ao que tudo indica, aqui está o intrigante centro do questionamento.

Mas é necessário lembrar que existem projetos que pretendem anular mesmo estes componentes que parecem indispensáveis. Boal, por exemplo, chega a afirmar que "espectador" é uma palavra obscena. Certas técnicas de suas propostas, definidas como "teatro do oprimido", acentuam a necessidade de eliminar aquele que "assiste", libertando-o de uma condição que seria, necessariamente, opressiva. Resumindo, para Boal a poética do oprimido se transforma na poética da libertação: no projeto de Aristóteles, o espectador delega poderes para que o personagem pense e atue em seu lugar; no projeto de Brecht, para que o personagem atue mas não pense em seu lugar (a experiência teatral seria reveladora no nível da consciência, mas não no nível da ação). Para Boal, teatro é ação. Pode não ser revolucionário, mas é um ensaio da revolução. Seu objetivo é fazer com que o "espectador", nas experiências de "teatro-foro", interrompa a ação dramática, incorporando-se àqueles que a conduzem, formulando, através de representação, sua compreensão e capacidade de agir.

Eliminar o espectador não implica eliminar a mais elementar idéia de teatro?

Outros pretendem (e não estamos nos referindo a casos particulares, como o teatro de bonecos ou de sombras) anular o ator. Manifestações de anárquico radicalismo, como os happenings, defendem uma transgressão de todas as leis da elaboração da obra de arte. Nestes eventos, a própria noção de espetáculo acaba sendo suprimida: o projeto transforma-se em realidade, a ficção é substituída pela verdade. Qualquer pessoa pode protagonizar e conduzir a ação, inventando um comportamento ou simplesmente extravasando impulsos.

Enfim, em casos extremos, a noção de representação é suprimida ou relativizada a ponto de ser impossível saber se o que acontece pertence ao campo da invenção ou da realidade. Em certos casos, inclusive, esta ambiguidade é tida como essência da manifestação proposta. Continuamos no terreno do teatro?





VI



Contestada a "consciência da cumplicidade", assim como eventualmente suprimidos os dois sujeitos desta possível cumplicidade, o ator e espectador, abolidos o espaço e a mais elementar noção de espetáculo, o que resta? Na melhor das hipotéses, é possível reconhecer, com certa generosidade, que nestes extremos, para tentar sobreviver, o teatro não hesita em negar-se a si mesmo.

Frente a tais excessos, parecem até secundárias uma série de valiosas objeções que, por exemplo, se colocavam contra a noção de que ator e espectador bastavam para determinar o nascimento do mais elementar ato teatral. Muitos recusam o que lhes parece uma grosseira simplificação, reivindicando o reconhecimento de uma indivisível santíssima trindade: o ator, o espectador e, primordial e sempre presente, o autor. Esta questão não é nada desprezível e nos remete ao centro do problema da criação teatral.

Indagar quem teria surgido antes, o autor ou o ator, pode parecer uma pergunta tão desgastada quanto investigar quem apareceu ants, o ovo ou a galinha. A necessária existência de um autor não pode também ser confundida com uma visão restritiva do problema. A realização de um espetáculo, ensaiado ou improvisado, formalmente rígido e acabado ou aberto e deliberadamente incompleto, pressupõe uma proposta temática e ideológica. E uma organização cênica básica, mal ou bem definida. É evidente que em muitas ocasiões, inclusive no exercício do mais absoluto improviso, a figura do autor pode confundir-se com a do ator. Mesmo que seja uma identificação circunstancial. É igualmente evidente que o autor pode ser mais que um, dissolvendo-se a autoria no coletivo de trabalho. A questão coloca sérias interrogações: será o ator, elemento central e agente criativo do espetáculo vivo, único indispensável, um indivíduo limitado à condição de intérprete? E não apenas intérprete da realidade e dos homens, mas também de propostas ideológicas ou projetos artísticos que o utilizam como instrumento?





VII



Um espetáculo de teatro, seja tragédia ou comédia, drama ou revista musical, mímica ou ópera, pode ter como ponto de partida um texto escrito em seus mínimos detalhes. Com diálogos completos e indicações cênicas, expondo conflitos entre personagens perfeitamente delineados e narrando as relações que os homens estabelecem entre si em determinadas circunstâncias. Como obra literária - e também musical, no caso de opereta, ou de ópera - está completa: como texto teatral, entretanto, exige para realizar-se integralmente, ser encenado. Ou seja, assumir o espaço cênico, corporificado por intérpretes que, obedecendo a uma concepção preliminarmente estabelecida, criem um confronto de emoção e raciocínio com os espectadores. Mas nem todo espetáculo necessariamente existe a partir de um texto. Pode, por exemplo, nascer de simples indicações de ação e conflitos. Ou transformar em matéria cênica uma proposta de trabalho vagamente redigida, um poema, uma narrativa que sugira elementos cênicos, uma idéia inicial a ser improvisada numa prática imprevisível, etc. O autor destes diferentes estímulos iniciais será fielmente o autor do espetáculo? Na melhor das hipóteses poderemos responder: nem sempre.

Existe uma escrita literária, também chamada escrita dramática, que efetivamente pertence ao domínio do teatro, mas igualmente tem seu espaço na história da literatura. Existe uma escrita cênica, que desenvolve uma linguagem específica, que frequentemente parte da escrita dramática. Mas nem sempre.

Mais um aspecto exaustivamente discutido através da trajetória histórica do teatro: como se estabelecem as relações de liberdade e/ou subordinação entre o autor da obra literária (sobretudo quando se trata de um texto escrito enquanto literatura dramática, destinado ao palco e sem condições de atingir sua plenitude poética e ideológica quando é simplesmente lido) e o autor do espetáculo (aquele que organiza a linguagem teatral, tarefa desempenhada por muitos através dos anos, hoje resultado das opções e concepções do encenador)? Melhor: existem duas autorias? Ou uma delas é determinante e, predominando de forma decisiva, define o significado do espetáculo?
Principalmente a partir dos últimos anos do século XIX, a questão do encenador se impõe como fundamental. Homens que escrevem para teatro sempre existiram. Já o problema estético da encenação é mais recente. Ainda que o teatro, é evidente, tenha sempre tido encenadores: às vezes autores que pessoalmente orientavam seus espetáculos, às vezes atores que organizavam a disciplina e o trabalho de seus companheiros, às vezes cenógrafos que chegaram a impor suas concepções visuais ao conjunto, às vezes contra-regras ou coreógrafos ou professores de arte dramática, etc. Desta fase artesanal passou-se para uma fase criadora e crítica: a partir da necessidade de coordenar elementos técnicos, cada vez mais complexos com o desenvolvimento progressivo de recursos mecânicos para a cena e com a introdução da luz elétrica, o encenador acaba transformando-se no responsável pela visão unitária e coerente do produto teatral, marcando cada espetáculo com sua postura ideológica.
Simplificando um processo complexo, se estudarmos as nem sempre pacíficas relações entre dramaturgos e encenadores, sobretudo nas últimas décadas, será possível esquematizar uma divisão da história do espetáculo em dois campos opostos: aquelas poéticas (formulações teóricas e práticas não necessariamente ligadas a um sistema geral de filosofia, mas coerentes com uma experiência concreta) que definem o teatro como o local onde o "Verbo se faz carne", e portanto "a Palavra é mãe e soberana", cabendo a todos os artistas e técnicos a missão de ilustrar e traduzir cenicamente os textos literários a partir da submissão humilde de uma postura de total e absoluto respeito; e aquelas poéticas que, ou negam a superioridade do texto, considerando-o exclusivamente um pretexto para uma criação pessoal, ou partem em busca do sonho de um teatro total, ou com firmeza recusam a ditadura da palavra, ou, na mais serena das hipóteses, procuram compreender o espetáculo, se não como valor hegemônico, ao menos como algo independente do texto.
É evidente que o extremismo destas colocações apenas encobre a questão essencial. E, supondo a existência de uma escrita dramática, o objetivo do encenador que aceita a idéia de que a tarefa social do teatro está prioritariamente contida na responsabilidade do espetáculo, instante único e insubstituível de diálogo e reflexão com o público, consiste em estabelecer uma relação dialética com o texto que lhe serve de ponto de partida. Interpretando-o criticamente em função não de conceitos ou suposições pessoais, mas em função de uma análise objetiva que nasce de sua compreensão da verdade histórica do texto e da realidade concreta e contraditória que o cerca, na qual seu espetáculo será inserido. Não se trata, portanto, de cultivar o falso respeito nem a ingenuidade do ridículo desprezo: o essencial é saber assumir um confronto crítico. A quem, afinal, o encenador precisa ser fiel e a quem precisa servir? Seu primeiro e fundamental compromisso, sem dúvida, é com seu tempo e com sua realidade.
O teatro existe na duração do espetáculo. Uma arte autodestrutiva. Como insiste o encenador inglês Peter Brook, uma arte sempre escrita no vento. Mas que se realiza a partir de uma tomada de consciência de si mesma: a realidade do teatro, insistem os seguidores de Brecht, é sua teatralidade. São os meios através dos quais é possível chegar à realidade para transformá-la. Explica Bernard Dort: "Hoje, se queremos fornecer reproduções realistas da vida social, é indispensável reestabelecer o teatro em sua realidade de teatro."


VIII

Do primitivo instinto de ser outro, da necessidade do disfarce e do jogo lúdico, da vontade de homem de ver-se a si mesmo reproduzido, do ritual religioso ou profano, da magia e da mais primária imitaçãoda natureza, o espetáculo ganhou dimensão própria. Definiu seu campo de ação, respondeu às exigências dos homens, até enquanto veículo de informação. Situou-se e participou da vida das sociedades: entregou-se à religião, à política, ao vazio nihilista ou ao apocalipse anárquico. Acabou transformando-se, sobretudo hoje, às vezes em campo experimental menos ou mais comprometido com o esforço coletivo do homem para dominar a natureza e a sociedade, ou em campo de radicalizações nem sempre amadurecidas, mas ditadas por impulsos de incontida busca de novos recursos expressivos. Transformou-se o espetáculo em pura e simples mercadoria, sujeita às leis do comércio. Oscilando entre crises de oferta e de procura, inserida na disputa da livre-concorrência proposta pelo sistema capitalista de produção. Uma mercadoria às vezes até bastante rentável, manipulada por empresários interessados unicamente na lógica do lucro. Embalada para presente, vendida em "supermercados culturais", onde se organiza o tráfico multinacional da mentira e da mistificação, não deixará de ser mercadoria - inocente ou perigosa, necessária ou supérflua -, dentro da lógica da produção capitalista. Mesmo enquanto cultura, terá este dúplice componente, e como tal deverá ser compreendida e usada. Engajado, o teatro sempre esteve ou na defesa de valores progressistas e mesmo revolucionários ou, até por omissão, empenhado na defesa de idéias conservadoras. Mas para os que não se submetem, os que recusão o silêncio e não aceitam compactuar com a comemoração ou a encenação da mentira, o teatro, assumido enquanto tal, pode ser a origem de um ato produtivo: para o espectador, um espetáculo pode ser não o simples reconhecimento de sua subjetividade, mas sim o conhecimento de sua existência como ser social.
O teatro já foi cúmplice em etapas obscuras do pensamento que produziam o ritual e a cerimônia como formas de cultuar o irracional e manter os espectadores como prisioneiros da impotência. Hoje o público poderá integrar-se na dialética histórica. E a noção de produtividade, na qual insistem Brecht e os que retomam suas proposições teóricas, reside justamente no estabelecimento de um ato de conhecimento, divertido, dialeticamente aberto, entre o ator, o homem que ocupa o espaço cênico, e o espectador, aquele que observa seus gestos, palavras e movimentos. E a tarefa histórica e crítica do terceiro componente da "santíssima trindade", o autor, certamente o encenador, será justamente a de relacionar ator e espectador com a totalidade histórica.
Wekwerth encontrou palavras precisas para definir esta comunicação, centro da reflexão de hoje sobre a questão teatral: atores e espectadores se enfrentam, no espetáculo, como dois grupos de produtores, entretendo-se mutuamente, criticando-se e revelando-se mutuamente necessários.


O que é Teatro? - Fernando Peixoto

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