segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Evoé!

Dioniso


"Com a vinculação indissolúvel entre a tragédia e o culto de Dioniso pisamos em terreno firme. O deus, a cujo serviço medrou o drama trágico dos gregos, não pertence ao círculo olímpico dos deuses homéricos. Essas figuras luminosas radicam no espírito da epopéia nobre e, em sua beatífica congregação, transmitem a nós, homens da posteridade, a imagem de um mundo contemplado maravilhosamente em seus poderes vivos. Erguem-se à nossa frente como senhores mais nobres e magníficos que os príncipes mortais e, mesmo assim, sua natureza tem muitos traços em comum com estes. Suas vidas correm fáceis no Palácio olímpico e sua vontade apresenta um caráter altamente pessoal. Não assumem a responsabilidade pelo reinado da justiça eterna no universo e tampouco evocam a si o sofrimento dos homens, para resolvê-los em sua divindade. É verdade que não se afastam do ser humano: têm amigos em seu meio, favoritos, a quem ajudam nas horas de perigo e alegram com suas dádivas. Exigem veneração e, em troca, podem ser senhores bem sociáveis, quando lhes apraz. No entanto, quão diferente se apresenta aos homens o deus que, no círculo dos olimpianos, foi sempre um estranho, ainda que os gregos, segundo sabemos agora pelas tabuinhas de escrita Linear B, já o conhecessem na época micênica. A Dioniso, não bastam orações e sacrifícios; o homem não está para com ele na relação, amiúde friamente calculadora, de dar e receber; ele quer o homem inteiro, arrasta-o para o horror de seu culto e, pelo êxtase, eleva-o acima de todas as misérias do mundo. Que ele seja o deus do vinho designa tão-somente uma parte de seu ser, pois toda a incitante vida da natureza, toda a sua força criadora, configurou-se nele. Em seu culto orgiástico, a própria natureza arranca o homem à instabilidade da sua existência, arrasta-o para o interior do mais profundo reino de sua maravilha, a vida, levando-o a conquistá-la e senti-la de forma nova. Por menor que seja essa tentativa de expressar com palavras a natureza do deus, uma coisa, sobretudo, ela pretendeu deixar claro: o elemento básico da religião dionisíaca é a transformação. O homem arrebatado pelo deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo quotidiano. Mas a transformação é também aquilo de onde, e somente daí, pode surgir a arte dramática, que é algo distinto de uma imitação desenvolvida a partir de um instinto lúdico, e distinto de uma representação mágico-ritual de demônios, arte dramática que é uma replasmação do vivo."
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LESKY, Albin. A Tragédia Grega. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971. p. 61. Debates: Teatro.

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