quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

teatro e vanguarda - BRECHT E ARTAUD

Antonin Artaud





(trechos)




"Cada ideologia é para os marxistas como que o indicador dos domínios em que a necessidade de um trabalho teórico se faz sentir."


"nomes como os de Brecht e Artaud, para além das críticas e falsificações a que estão sujeitos, não deixam de nos pôr problemas decisivos - num centro de um debate acerca do teatro e para além dele."


"cabe perguntar se o diálogo forçado que se estabeleceu entre eles tem de fato razão de ser; antes de mais é preciso aprender a lê-los e tal como estão escritos; como textos de função teórica ou crítica."


"como diz Althusser: 'Podemos avançar a afirmação segundo a qual (...) a obra de arte não pode deixar de exercer um efeito diretamente ideológico, de que ela mantém com a ideologia relações muito mais estreitas do que qualquer outro objeto, e que não é possível pensar a obra de arte, na sua existência especificamente estética, sem ter em conta esta relação privilegiada com a ideologia, quer dizer, sem tomar em conta o seu efeito ideológico direto e inevitável."


Gramática de Brecht

"nunca um teatro afirmou com tanta clareza as suas ligações com a luta de classes, com as práticas políticas, com a teoria marxista, nunca um teatro aspirou a um papel tão preciso no interior do processo revolucionário em curso."

"Não podemos satisfazer-nos, diz Brecht, com um teatro que se resuma a dar-nos sensações, idéias ou impulsos limitados pelo domínio das relações humanas em que se desenrola a ação das suas peças; necessitamos de um teatro que adote e provoque sentimentos capazes de intervir na transformação do domínio destas relações."

"Não precisamos nos referir mais à importância política do teatro de Brecht; devemos mesmo empenhar-nos em defendê-la, em protegê-la contra as reduções e recurepações 'estéticas' a que geralmente é exposta nos nossos palcos: só assim a sua atividade poderá ser efetiva."

"O 'efeito de distanciação' de que tanto ouvimos falar: um conjunto de meios formais, um dispositivo ativo e organizado - destinado a produzir um 'efeito ideológico' determinado."

"é a descontinuidade significante que permite que o julgamento do público, a sua 'lucidez', penetrem no espetáculo e se tornem nele um elemento ativo e necessário."

"O texto é portanto concebido como um elemento, e pode perfeitamente, sem que isso se possa considerar sacrilégio ou traição, ser transformado e modificado pela representação, se o que tiver significado for precisamente esse conjunto de modificações."

"Segundo Brecht, é necessário romper definitivamente, não apenas com o 'conceito de ator, estrela da peça', mas também com uma psicologia plena e linear, 'coerente', de acordo com a pseudocoerência do pensamento mecanicista e idealista que o espectador poderia adotar durante o espetáculo. Pelo contrário, a 'personagem' deverá ser apresentada como contraditória, deve moldar a sua própria representação através de 'arranques' e roturas do espetáculo e do texto."

[Brecht] "propõe um teatro que mostre o seu próprio processo de produção."


Artaud ou a rotura

"face à coerência marxista que nós encontramos imediatamente, e quase 'naturalmente', no discurso de Brecht, o texto de Artaud pode sur-nos como confuso, muito claramente marcado, até, por uma certa forma, de metafísica."

"Não se trata de fazer de Artaud um marxista-sem-querer, mas de afirmar que o discurso de Artaud, pelo seu objeto, pelos problemas que levanta, pela fuga à ideologia dominante que nele se realiza, interessa à nossa pesquisa teórica e abre-lhe domínios que ela deve explorar."

"Insistimos no fato, diz Artaud, de que o primeiro espetáculo do Teatro da Crueldade se debruçará sobre os problemas da massa, muito mais prementes e muito mais inquietantes do que os de qualquer indivíduo".

"Encontramo-nos pois perante um discurso ambíguo e contraditório; o nosso trabalho deverá consistir em revelar o lado materialista do discurso de Artaud: trata-se portanto de uma operação 'estratégica' destinada a arruinar as recuperações místicas do teatro de Artaud e que, por outro lado, nos remete para um trabalho fundamental sobre o significado desta rotura: o trabalho de Jacques Derrida."

"'A metafísica de Artaud, escreve Derrida, nos seus momentos mais críticos, realiza a metafísica ocidental, a sua finalidade mais profunda e mais permanente. Mas noutro extrato do mais difícil do dos seus textos, Artaud afirma a lei cruel (isto é, necessária, de acordo com o que ele entende pela palavra cruel), lei agora assumida e vivida, mas já não na ingenuidade metafísica'. É assim que podemos encontrar em Artaud, simultaneamente, uma metafísica da respiração, da palavra plena, da unidade perdida - e a subversãodesta metafísica, que se inscreve na cena em termos de crueldade, ou seja, para Artaud sob a forma de 'rigor', de necessidade."

A cena e o corpo

"Porque o teatro, segundo Artaud, não é de forma alguma, essa 'festa' anárquica e 'psicológica' que tentam realizar os que abusam do seu nome, (...) - é pelo contrário rigor, desintegração organizada da ordem 'cultural' e nova gramática formal a instaurar."

"Não cremos que a vida seja representável em si mesma ou que valha a pena correr o risco de representá-la." (Artaud)

"Romper com a expressão, com 'a ilusão daquilo que não é', é deixar de fazer do teatro um 'reflexo' - é situá-lo, já não em frente do mundo, numa posição secundária ou numa repetição, mas do lado do mundo, agindo nele e ligado a ele por toda a espécie de laços ativos."

"A encenação torna-se um trabalho essencial em que está em jogo a substituição da poesia da linguagem por uma poesia no espaço que se realizará precisamente naquilo que não pertence exatamente ao domínio das palavras."

"a arte do teatro não é mais que a ciência do código formal teatral, a descoberta e a aplicação das leis precisas que regem os corpos e os movimentos."
"não se trata de abolir a 'palavra' do teatro, mas sim de lhe mudar radicalmente a função."

"Não se trata de suprimir a palavra articulada, mas sim de dar aproximadamente às palavras a importância que elas têm nos sonhos."

"com o desaparecimento da concepção de uma 'mensagem' a transmitir, desaparece também a noção de público que se limitaria a recebê-la. Para Artaud, o 'público' deve estar no interior do espetáculo, no 'centro', metido no jogo como um elemento desse jogo, de forma a que, no limite, palco e a platéia deixem de existir."

"Os espetáculos não são entregues ao capricho da inspiração inculta e irrefletida do ator."

"Artaud não pretende 'aderir' à espiritualidade oriental, mas sim extrair desse 'misticismo' leis precisas e portanto 'científicas'."

"contrariamente a Brecht para quem 'tudo o que respeita aos sentimentos deve ser exteriorizado - deve tornar-se gesto', para Artaud 'toda a emoção tem bases orgânicas; é através do cultivo da emoção no próprio corpo que o ator lhe aumenta a densidade voltaica': podemos perguntar-nos se, pelo menos a este nível concreto, o 'materialismo' não terá de fato mudado de campo."

"o teatro, segundo Artaud, deve consistir na subversão desta 'cultura' construída sobre a palavra."

"ao ator já não compete 'representar' um papel previamente estabelecido, mas sim transformar-se nesse hieróglifo, nessa linguagem não expressiva e ativa."

"E nessa subversão da escrita teatral, estamos sem dúvida mais próximos do marxismo do que poderíamos supor."

"O pensamento de Marx escapa ao pressuposto ocidental que consiste em reduzir toda a práxis (gestualidade) a uma representação (visão, audição)."

"'Encontramos assim, num momento crucial do pensamento ocidental que se afirma contestando-se, uma tentativa de fuga da significação (do sujeito, da representação, do discurso, do sentido) para lhe substituir o seu contrário: a produção como gesto'. A escrita, gestual ou plástica, pela qual se define o teatro de Artaud, insere-se portanto nesse gesto fundamental do marxismo, que permite pensá-la, e que por outro lado ela inscreve, tornando-se, em sentido pleno, uma prática."

Para um teatro materialista

"Teatro materialista: teatro que manifesta um avanço em relação à teoria que o acompanha, e que obriga a teoria a pensar esse avanço."

"E é aqui que se define, em profundidade, o problema das relações do teatro e da ideologia. Para evitar cairmos no esquecimento (como o que funda a teoria do 'teatro comprometido'), podemos operar a distinção de Thomas Hebert entre ideologias do tipo A (produtos derivados da prática técnica empírica, tendentes a fazer passar-se por ciência) e ideologias do tipo B (condições de uma prática política, desempenhando o papel de cimento na estrutura de uma formação social). Podemos ver então que a 'falha' do discurdo brechtiano é ter crido poder conduzir a luta ideológica ao nível B sem ter liquidade completamente a ideologia de tipo A, aquela que suscita 'espontaneamente' a prática estética. Mas um perigo de uma leitura demasiado fiel do discurso de Artaud poderá ser o de abandonar o nível B, contentando-se com um formalismo que desempenharia certamente um papel determinante no nível A, sem por outro lado pensar nas posssibilidades de articulações políticas de um tal teatro. Trata-se portanto de constituir uma prática que saiba lutar simultaneamente nos dois planos, pensando rigorosamente a posição dos seus elementos mais importantes e das suas determinações. Aqui, mais uma vez, o trabalho teórico, e só ele, poderá impedir que o teatro seja 'recuperado' por um outro tipo de ideologia."

GUY SCARPETTA

(Extraído da revista Nowvelle Critique, n. 25, Junho de 1969.)

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